Depois que o sabão atingiu seu “ponto”, retiram-no do fogo e esperam que esfrie até poder moldá-lo na forma de bolas, barras ou de pão. No caso da produção de barras, costumam despejar o sabão ainda quente em uma caixa de madeira ou papelão e o cortam com uma faca após esfriar completamente. Os outros formatos são atribuídos tal como mencionou Dona Aparecida: “E antes dele acaba de esfriá, enrola. Porque se deixa esfriá ele fica duro, aí já não dá pra fazê. É só espera ele firmá ali que dá pra pô a mão, né?”. Isso significa que o sabão de cinzas solidifica com o esfriamento e que existe uma temperatura ideal para moldá-lo. Após isso, guardam-no em locais secos, muitas vezes envolvido em folhas de papel, papelão, na palha de milho ou em folhas de bananeira ou de mamona. Usam-no para lavagem de roupas, utensílios de cozinha e no banho, destacando seus benefícios para a pele:
Rosa: É, ele é bom. Serve pra lavá ropa, serve pra gente arrumá cozinha, serve pra lavá a cabeça, que ele é bom pra pele, né.
Aparecida: E aqui ele espuma igual a um sabonete. Fica bacana.
Conforme mencionado, uma característica do sabão de cinzas é ser formado por uma mistura de diferentes sais ou sabões, conforme a variedade de ácidos graxos encontrados na gordura animal. Entretanto, todos produzem sais de potássio nas reações com a dicuada, que são mais moles do que os de sódio derivados das reações com soda cáustica. Por esta razão, o sabão de cinzas é mais macio ao contato com a pele. Ele também é anti-inflamatório por amolecer os tecidos, “pode usá ele pra uma quemadura, pode usá ele pra quarqué coisa sem problema” e auxilia a manter a pele hidratada, o que é intensificado pelo seu conteúdo em glicerol.
O sabão de cinzas também apresenta a seguinte propriedade:
Aparecida: O tempo mudô, o sabão também muda, né. O sabão soa…
Rosa: É, soa. Ele costuma umedecê.
Aparecida: Ele é igual sal, né? Porque o sal tamém, o tempo muda, ele umedéce.
O fato de que “o sabão soa” pode ser devido à absorção de água do ambiente, à sua higroscopia, tal como o sal de cozinha ou cloreto de sódio. Ele também pode perder água de composição nos dias quentes. No entanto, as mulheres acreditam que as fases da lua influenciam o preparo do sabão de cinzas. Izabel disse que “na lua nova e na cheia espirra muito. Tem que pô na minguante pra retirá no quarto crescente”.
À medida que a Lua gira ao redor da Terra, passa por fases que se repetem ciclicamente ao longo do ano. As quatro principais fases (Nova, Quarto Crescente, Cheia e Quarto Minguante) ocorrem nessa ordem durante um período de aproximadamente 29,5 dias (SILVEIRA, 2001, p. 1). Como a Lua gira em torno da Terra, sua aparência para um observador terrestre dependerá da posição relativa entre ela, o Sol e a Terra e cada fase representará a face da Lua iluminada pelo Sol que está voltada para o observador na Terra. O número de dias entre fases consecutivas é de sete ou oito, mas isto pode variar e ocorrer também em intervalos de nove ou seis dias ao longo do ano. Tomando sete dias como média de tempo entre uma fase da lua e outra, o sabão de Izabel deve ser preparado em período maior do que 14 dias, já que o processo é interrompido durante as Luas Cheia ou Nova, pois “espirra muito” nestas fases.
Na medida em que a Lua descreve uma órbita aproximadamente elíptica em seus giros ao redor da Terra demonstrando diferentes fases, sua distância relativa também varia. Quando está mais próxima a distância é de 356.800 quilômetros e quando está mais distante igual a 406.440 quilômetros (considerando a distância média entre o centro da Terra e o centro da Lua) (SILVEIRA, 2001, p. 6). Esta variação também está relacionada com as fases da Lua e à sua influência gravitacional sobre as águas oceânicas que, somada à força gravitacional do Sol, provoca as marés. Se considerarmos que a influência sobre o preparo do sabão de cinzas é do mesmo tipo, ela é, no entanto,
(…) muito pequena (é a mais fraca das forças físicas conhecidas). Sendo tão pequena, a força gravitacional só se torna perceptível quando estão envolvidas massas muito, muito grandes, como, por exemplo, as massas da Lua e dos oceanos da Terra (esclarecendo: ela é proporcional às massas dos corpos e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles). É por isso que, assim como você será incapaz de perceber marés em um copo d’água, também o nosso corpo não sentirá qualquer influência perceptível da Lua. (REIS, 2005)
Mesmo que consideremos massas de água menores do que as dos oceanos e maiores do que uma bacia de água:
Mesmo em um grande lago, as marés são extremamente pequenas. Nos Grandes Lagos, por exemplo, as marés num excedem duas polegadas, de acordo com a National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA/EUA), que acrescenta, “Estas pequenas variações são camufladas pelas grandes flutuações nos níveis do lago produzidas pelo vento e pelas variações da pressão barométrica. Consequentemente, os Grandes Lagos essencialmente não têm marés”. (BRITT, 2009)
Se a Lua não exerce influência sobre pequenas quantidades de água, como explicar sua influência sobre o preparo do sabão de cinzas? Outra crença compartilhada pelas mulheres diz respeito ao sabão ser prejudicado por um “olho gordo”, um mal olhado, que o faz “desandar” durante o seu preparo. Por isso, costumam realizar o processo longe de estranhos ou dos conhecidos “azaradores” do sabão, pessoas cuja presença é reconhecidamente maléfica para o sabão. Por isso, fazem orações no início e durante o processo e colocam ramos de arruda – Ruta graveolens, por detrás da orelha ou próximo e amarrado à panela.
Como podemos explicar a influência de um “olho gordo” sobre o sabão considerando que o que está acontecendo são reações químicas? De modo geral, a ocorrência e o desenvolvimento das reações dependem de vários fatores, mas não há evidência de que um mal olhado seja um deles. Inicialmente é fundamental que ocorram encontros, colisões entre os regentes com quantidade de energia necessária para desestabilizar os átomos e ocasionar rearranjos para formar os produtos das reações, os sabões. Estas reações dependem, portanto, da frequência de colisões bem sucedidas no meio reacional, que, por sua vez, dependem da energia de ativação, que no caso do sabão de cinzas é favorecida com o aquecimento. Como poderia um mal olhado influenciar as colisões entre os reagentes ou a energia de ativação das reações? Que fenômeno estaria envolvido?
Os antropólogos buscam outros tipos de explicações para compreenderem crenças deste tipo. Clifford Geertz (1999), por exemplo, mencionou que a crença em feitiçaria costuma ocorrer quando “as expectativas comuns falham”, quando ocorrem “anomalias ou contradições”, funcionando como uma espécie de “testa de ferro” no sistema de pensamento do senso comum. Se isto for válido para o caso do “olho gordo”, então é como se fosse uma desculpa por não terem conseguido produzi-lo adequadamente. Por outro lado, essa crença indica também que as mulheres podem estar vendo o preparo do sabão de cinzas como sendo mágico e que, por isso, é susceptível a outras magias. Afinal, este sabão é feito a partir de materiais rudes e grosseiros, como as cinzas, a dicuada e a gordura animal, que ao serem misturados transformam-se em um bem de maior valor, melhor aparência e que permite limpar e promover higiene e saúde. Talvez seja por isso que acreditam na influência da Lua em seu preparo, mas do ponto de vista dos físicos e dos astrônomos a influência gravitacional sobre pequenas massas de água é desprezível e não influenciará o feitio do sabão.
Deve ser lembrado, no entanto, que o preparo deste sabão requer muita atenção no controle e ajuste das quantidades relativas entre a dicuada e a gordura, o que não é muito fácil de ser realizado na prática. De acordo com os químicos um “olho gordo” não terá efeito sobre isso ou sobre as reações de saponificação, sendo mais provável dizer que houve algum erro ou descontrole do processo. Uma pessoa próxima, por exemplo, poderia provocar desatenção ou distrair quem está preparando o sabão. De todo modo, as mulheres não têm culpa por ainda não conhecerem a outra “ordem invisível” presente no preparo do sabão de cinzas, mas, por outro lado, também não precisaram disso para sua produção.
A compreensão científica sobre a composição química das gorduras e da saponificação e os avanços tecnológicos que ocorreram no século XIX e início do século XX modificaram tremendamente o modo de produção dos sabões. Se antes haviam muitos “artesãos” de sabões feitos com cinzas, a partir daí nenhuma produção caseira ou artesanal conseguiu concorrer com aqueles que passaram a considerar a ciência e a tecnologia na produção (GIBBS, 1939).
Foi Michel Eugène Chevreul quem colocou o fabrico de sabões em base científica pela primeira vez. Partindo de estudos anteriores e após 10 anos de pesquisas ele publicou o livro Recherches chimiques su les corps gras d’origin animale (Pesquisas químicas sobre os corpos graxos de origem animal) com detalhes experimentais e conclusões teóricas. Outros avanços foram o uso do aquecimento a vapor e a produção de soda cáustica em grande escala. O que isto nos diz é que a ciência e a tecnologia alteraram o curso da produção de sabões no mundo e os sabões feitos com cinzas passaram a ser substituídos pelos modernos sabões, sabonetes e produtos de limpeza atuais, com grande diversidade de cores, texturas, cheiros e outras qualidades. Mesmo assim, ainda existem aquelas que preferem o sabão de cinzas, conforme disse Dona Rosa: “Faço. Sempre eu faço. Faço poco, mais faço!”.
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Referências
BRITT, R. R. Moon Myths: the truth about lunar effects on you. 2009. In: <http://www.livescience.com/7899-moon-myths-truth-lunar-effects.html>. Último acesso em: Nov 19, 2014.
GEERTZ, C. O senso comum como um sistema cultural. In: GEERTZ, C. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 111-141.
GIBBS, F.W. The history of the manufacture of soap, Annales of Science, p. 169-190, 1939.
REIS, W.P. Mitos: a lua cheia influencia nosso comportamento, o crescimento dos cabelos, etc. 2005. In: <http://www.projetoockham.org/boatos_luacheia_1.html> Último acesso: Nov 19, 2014.
SILVEIRA, F.L. As variações dos intervalos de tempo entre as fases principais da Lua. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 23, n.3, p. 300-307, 2001. Disponível em: <http://www.if.ufrgs.br/~lang/Textos/Tempo_fases_Lua.pdf>. Último acesso: Nov 19, 2014.