Embora Dona Rosa não tenha mencionado, algumas mulheres também utilizam soda cáustica ou hidróxido de sódio no preparo do sabão de cinzas, como era o caso da mãe de Dona Anésia: “Minha mãe usava os dois, né? Soda e dicuada. Que ela punha um poco de cada um. Com a soda anda mais rápido, né? Fáiz mais rápido o sabão. A minha mãe fazia. Ela usava a soda e a cinza, os dois. Dizia que era pra andá mais depressa. Usava menas soda, né?”.
Segundo a mãe de Dona Anésia, a vantagem do uso da soda no preparo do sabão é que “anda mais rápido”, “fáiz mais rápido o sabão”, faz “andá mais depressa”, acelera a velocidade das reações de saponificação. De modo geral, as reações químicas são aceleradas por catalisadores, mas esse não é o caso da adição de hidróxido de sódio, pois este é consumido nas reações com os ácidos graxos tal como o carbonato de potássio e também produz sabão, mas por que sua reação “anda mais rápido”?
Uma condição para que as reações químicas ocorram é haver colisões entre os reagentes com uma quantidade de energia suficiente para desestabilizá-los e provocar rearranjos dos átomos com a formação de novas espécies químicas, os produtos das reações. Esta condição energética varia de uma reação para outra e é chamada “energia de ativação”. No caso das reações de saponificação envolvendo o hidróxido de sódio, a energia de ativação deve ser menor em comparação com aquela envolvendo carbonato de potássio. Assim, “com a soda anda mais rápido”, “fáiz mais rápido o sabão”, as reações ocorrem mais rapidamente devido à menor demanda energética.
Dona Anésia mencionou que sua mãe “criou 12 filhos e nunca comprou um sabão”. Isso significa que a limpeza e higiene de sua família era feita utilizando o sabão de cinzas que levava soda cáustica no preparo. Suas colegas, no entanto, demonstraram-se contrárias ao uso da soda:
Rosa: É, eu não uso soda não, ponho só a dicuada só. Se pô soda aí não serve pra gente lavá a cabeça, né.
Aparecida: É, com a dicuada. E pode usá ele pra uma quemadura, pode usá ele pra quarqué coisa sem problema, né? E com a soda aí já não pode usá, porque a soda prejudica, né. A pele… Não é bom a soda.
O argumento de Dona Rosa é que se adicionar a soda o sabão resultante não poderá mais ser usado na limpeza dos cabelos e do couro cabeludo. Já Dona Aparecida disse que a soda pode prejudicar a pele e que o sabão feito somente com dicuada pode ser usado “pra quarqué coisa sem problema”, inclusive no tratamento de queimaduras epiteliais. Dona Rosa disse ainda que “tem uma porção de gente que procura”, “pra podê dá pra galinha, negócio de golgo, de galinha, que tamém é bom”, mas, “se pô a soda aí já não serve pra remédio”. Ela se referiu a uma doença de galinhas e à procura pelo sabão de cinzas para a cura.
A soda cáustica é uma substância altamente corrosiva que pode irritar a pele e os olhos, provocar úlceras nas vias nasais e danos permanentes. O carbonato de potássio tem efeitos semelhantes, mas mais brandos em comparação com a soda cáustica (PATNAIK, 2002, p. 186). Então, por que o sabão feito com a dicuada não irrita a pele e o couro cabeludo e pode ser usado em queimaduras e como remédio para galinhas? Como explicar o fato da mãe de Dona Anésia ter usado o sabão preparado com dicuada e soda, “punha um poco de cada um”, na higiene de 12 filhos e não ter prejudicado nenhum deles? Enquanto conversavam, essas mulheres não perceberam isso?
Soda cáustica
Vimos que a mistura dos ingredientes no preparo do sabão de cinzas é feita com cuidado, especialmente próximo do “ponto”, do término das reações de saponificação. Neste, as mulheres buscam ajustar as quantidades relativas de dicuada e gordura de modo a não deixar “faltar” nem “passar” nenhum dos dois, de não haver nenhum deles em quantidade abaixo ou acima da requerida pelo “ponto”, pela estequiometria das reações. Assim, se o controle do meio reacional é bem feito, não haverá excesso de dicuada, soda ou gordura no produto final. Os reagentes serão consumidos nas reações químicas e suas moléculas serão modificadas, transformadas em novas substâncias com propriedades distintas, mas essas mulheres não demonstraram saber disso em outros termos?
Não foi Dona Rosa que disse: “Cadê a gordura na panela?”, sugerindo o seu desaparecimento pela ação da dicuada. Não foi Dona Aparecida quem disse que a gordura “enfraquece” a dicuada? Isto não seria válido também para a soda cáustica? Suas posições sobre o uso desta substância no preparo do sabão sugerem que elas estão vendo a sua ação de modo diferente da ação da dicuada. Pode ser que estejam presas à tradição ou que tenham receio de usar a soda cáustica devido aos perigos que apresenta, mas elas não perceberam que a mãe de Dona Anésia criou 12 filhos usando um sabão que levava soda cáustica em seu preparo? Semelhante ao sabão de cinzas, os sabões artesanais, de modo geral, são mais valorizados do que os sabões produzidos industrialmente, devido ao maior controle das proporções relativas entre os reagentes nos processos de produção. Esses sabões são, portanto, menos agressivos à pele.
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Referência
PATNAIK, P. Propriedades nocivas das substâncias químicas. V. 1. Belo Horizonte: Ergo, 2002.