“Comunidade ciência: aproveitando formas locais para promover a ciência na educação em ciências” (Community Science: capitalizing on local ways of enacting science in science education) é um capítulo da Parte VIII do Segundo Manual Internacional de Educação em Ciências (Second International Handbook of Science Education), a qual reúne estudos, revisões e reflexões dentro da temática da “Aprendizagem Fora-da-escola” (Out-of-School Learning). O texto é de autoria de Jennifer D. Adams, do Brooklyn College – The City University of New York/Estados Unidos, e estabelece um quadro de referência para trabalhos que envolvem interações com a comunidade. Para isso, a autora definiu um constructo e denominou-o Community Science.
Adams mencionou inicialmente que a expressão Community Science é usada em psicologia para se referir a ações de pesquisa e educação para a saúde visando a melhoria da qualidade de vida de uma dada comunidade, as quais normalmente partem de especialistas. Neste caso, uma possível tradução para o termo seria “Ciência Comunitária”. Em relação a estas ações, ela formulou as seguintes questões: que conhecimentos a comunidade têm e quais são os seus entendimentos sobre assuntos científicos e de saúde? Como as práticas da ciência são promovidas localmente? Como os saberes da comunidade podem ser usados para estruturar oportunidades de aprendizagem em ciências? Neste sentido, a expressão Community Science passa a adquirir outro significado, cuja tradução pode ser dada na forma de “Comunidade Ciência”.
Um conceito-chave nesta abordagem é o de “diferença recursiva” (recursive difference), que se associa à repetição (e ampliação) na escola dos saberes que os estudantes vivenciam, conhecem e constroem em suas vidas. A autora diz que isto ocorre segundo uma “estrutura” onde os alunos são encorajados a integrar o conhecimento das duas esferas: sala de aula e comunidade (Adams, 2012, p. 1163-1164). A ciência escolar, neste contexto, insere novas aprendizagens e reduz a descontinuidade existente entre a vida e a escola. “Comunidade Ciência” dá, assim, suporte para a integração desses saberes e inclui também a aprendizagem que ocorre em ambientes informais, de escolha mais livre e auto direcionada, os entendimentos cotidianos de ciência (que podem ou não usar os termos oficiais) e as decisões que as pessoas tomam no dia a dia utilizando o conhecimento científico. Associa-se ao aproveitamento de recursos de comunidades locais na educação em ciências, reconhecendo a existência de diversas formas de entendimento, evidências e modos de conhecer e a aprendizagem do conhecimento científico é vista como um meio para atingir objetivos pessoais e de base comunitária (Adams, 2012, p. 1165).
É a re/ligação da ciência que existe na comunidade com a ciência que se aprende na escola. Como tal, comunidade ciência cria uma estrutura pedagógica que faz com que as formas locais de uso da ciência tornem-se centrais para a prática e a discussão de nas salas de aula, onde é cada vez mais importante estabelecer conexões entre a ciência articulada no currículo e a ciência que os alunos experimentam em seus mundos de vida. (Adams, 2012, p. 1166)
Em resumo, o constructo criado por Adams propõe re/conectar a ciência ensinada na escola com a ciência que existe na comunidade; esta última envolve os saberes culturais das pessoas, a ciência das atividades diárias, a ciência presente nos ambientes informais de aprendizagem, os entendimentos cotidianos de ciência e as decisões que utilizam o conhecimento científico. É uma maneira de ensinar sensível aos “sentidos locais” dos alunos e utiliza recursos (saberes, práticas e discursos) da comunidade visando desenvolver habilidades para utilização do conhecimento científico como forma de melhoria da qualidade de vida.
Algumas experiências
Ao rever trabalhos na literatura, Adams selecionou seis experiências para exemplificar sua perspectiva. Uma característica das ações e projetos dentro do quadro de referência proposto é terem uma finalidade. Para exemplificar isto, ela descreveu inicialmente uma experiência com estudantes de ensino médio no âmbito de um projeto chamado “City-as-Lab” (Cidade-como-Laboratório), desenvolvida em uma escola da cidade de Nova York. Esta experiência envolveu também uma professora e uma estudante de doutorado da área de psicologia interessada em analisar comportamentos de saúde. As ações em sala de aula começaram com uma sessão envolvendo o filme Supersize Me (“Prejuízos de comer no MacDonald’s” ou “A dieta do Palhaço”, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=W4m28PVklHA) seguida da apresentação de estatísticas de óbitos associados a problemas de saúde na comunidade. O objetivo destas ações foi engajar os alunos na realização de uma pesquisa sobre os alimentos disponíveis localmente. A partir de seus saberes e vivências, os alunos formularam perguntas e hipóteses e planejaram verificá-las na comunidade. Partiram então para a quantificação das fontes e tipos de alimentos disponíveis em restaurantes, supermercados e outros pontos comerciais, coletando dados em 80 locais que foram mapeados posteriormente. Nesta experiência, a coleta de dados na comunidade foi a atividade onde os alunos demonstraram maior engajamento e teve vários desdobramentos: na medida em que os estudantes perceberam deficiências ou a falta de alimentos saudáveis na comunidade, reivindicaram melhorias junto aos comerciantes e foram atendidos; tornaram-se capazes de compartilhar o que tinham aprendido com as pessoas; alguns deram continuidade ao projeto e outros foram convidados para auxiliar outras pesquisas na Universidade de Columbia (Columbia University) após a apresentação de seus resultados em uma conferência.
O projeto Cidade-como-Laboratório permitiu aos estudantes usarem o contexto da comunidade para aprender a coletar, analisar, expor e comunicar dados. O projeto teve um propósito para os alunos quando usaram seus próprios saberes sobre a comunidade para elaborarem um projeto de pesquisa e compartilharem o conhecimento adquirido. Quando perceberam que haviam injustiças relativas às opções alimentares, exigiram mudanças. Para eles, este projeto de comunidade ciência tinha um objetivo maior do que simplesmente receber uma nota. (Adams, 2012, p. 1168)
Outras duas experiências descritas foram realizadas em ambiente informais de aprendizagem. A primeira diz respeito a uma pesquisa que envolveu interações de crianças de 11 a 14 anos com jardineiros em um projeto comunitário intitulado “City-Farmers” (Fazendeiros da Cidade) (Rahm, 2002). Trata-se de um programa de educação informal para jovens de uma cidade do interior dos EUA sobre ciência das plantas e empreendorismo. Segundo ela, o aspecto relevante dessa experiência foi que a aprendizagem do conhecimento científico envolveu objetivos distintos daqueles normalmente presentes na educação formal:
(…) os objetivos não eram aprender ciência, mas participar da produção de produtos comercializáveis que exigiu certo grau de compreensão científica por parte dos alunos. Este estudo demonstra o poder da integração dos princípios científicos em práticas e processos que permitem aos estudantes atingir objetivos determinados na e para a comunidade, contrariamente à aprendizagem isolada de princípios científicos sem esforço e vínculo com um local, que normalmente envolve somente memorização e não tem outra utilidade além de serem cobrados nas avaliações. Comunidade ciência intensifica as habilidades dos alunos para usarem o conhecimento da ciência como uma ferramenta na busca de motivações e objetivos pessoais e de base comunitária. (Adams, 2012, p. 1169)
Na segunda experiência informal, a autora descreveu uma conversa que ocorreu entre estudantes durante um almoço (Seiler, 2001). Nesta, dois estudantes discutiram como afinar um tambor e por empregarem uma linguagem própria, porém informada pelo conhecimento científico, a autora se referiu ao diálogo como um espaço híbrido de fusão de saberes. Em relação às duas experiências, Adams mencionou haver uma relação dialética entre ciência como um contexto e ciência contextualizada e observou que o papel do educador é criar “estruturas” que possibilitem aos estudantes utilizar seus próprios recursos, conhecimentos culturais e “sentidos locais”, de modo a criar oportunidades de aprendizagem para eles mesmos.
Na sequência de seu texto, Adams citou mais duas experiências, desta vez associadas a saberes tradicionais. Uma se referiu a uma atividade escolar realizada nas aulas de biologia de uma escola de ensino médio no Brasil, onde saberes tradicionais e científicos sobre plantas foram colocados em diálogo. Destacou, nessa experiência, a relevância da palavra “diálogo” para se referir às interações entre linguagens que vinculam cultura, ideologias e relações de poder:
A linguagem é um meio de expressão poderoso através do qual a cultura é transmitida e a ideologia da linguagem dá forma ao modo com as pessoas interagem, além de estabelecer relações de poder e privilégio (Winford, 2003). Ela pode fornecer meios para a expressão de perspectivas alternativas, mas também pode ser usada para reforçar uma perspectiva dominante e excludente. Nas aulas de ciências, o único discurso frequentemente aceitável/valorizado é aquele que usa as palavras e a linguagem cientifica para descrever as experiências dos alunos, as quais podem incluir conceitos mas não a linguagem sancionada pela ciência, como evidenciado pelo estudo de Baptista e El-Hani (Adams, 2012, p. 1170).
Esta experiência compreendeu, na realidade, uma intervenção curricular desenvolvida pelos pesquisadores. Como muitos alunos trabalham na agricultura e têm conhecimentos a respeito, eles entrevistaram alguns deles e relacionaram seus saberes aos científicos na construção de uma proposta pedagógica para a sala de aula. É interessante observar aqui a decisão dos estudantes pela preservação do saber tradicional para comunicação com as pessoas da comunidade e a conclusão dos pesquisadores sobre uma função importante da educação em ciências: a de enriquecer o pensamento e as linguagens dos estudantes em suas interpretações, o que, na experiência descrita, se materializou na forma da integração entre os saberes tradicional e científico em aulas de botânica.
A outra experiência relacionada a saberes tradicionais referiu-se a um estudo realizado pela pesquisadora June George (1999) sobre os saberes indígenas observados em uma vila costeira rural em Trinidade Tobago. O saber indígena foi conceituado por esta pesquisadora como sendo aquele produzido na busca de soluções para problemas cotidianos e que utiliza recursos culturais ou disponíveis localmente. Ela chama de saberes indígenas os saberes dos habitantes das comunidades locais de seu país. Ao analisar os saberes de jovens e anciãos de uma dessas comunidades, George identificou quatro tipos de relações com o conhecimento científico: (1) algumas práticas indígenas são explicadas pela conhecimento científico; (2) o conhecimento científico sobre alguns saberes indígenas ainda não foi desvendado; (3) existe uma associação evidente entre os saberes, mas os princípios subjacentes são diferentes e (4) alguns saberes indígenas não podem ser explicados utilizando os termos da ciência. Em sua análise destas considerações, Adams chamou atenção para como os professores resolverão eventuais conflitos entre os referenciais culturais dos alunos e a ciência escolar.
Focalizando a formação de professores
Tratando da formação docente, Adams descreveu também algumas experiências de desenvolvimento profissional relacionadas à perspectiva “Comunidade Ciência”. Antes, no entanto, ela mencionou o aspecto culturalmente sensível da pedagogia que vincula atividades em sala de aula com os mundos de vida dos alunos e suas comunidades, observando a importância de os professores:
– conhecerem tanto os conteúdos de ciências como as culturas e linguagens dos alunos;
– terem conhecimento sobre os esquemas e práticas culturais que existem na comunidade.
Ela reconheceu que os professores poderão ter dificuldades em relação à aquisição destes conhecimentos, mas acredita que podem desenvolver iniciativas e “hábitos mentais” que favoreçam e estimulem a integração de saberes da comunidade nas aulas. Sua percepção das dificuldades dos professores está relacionada à observação de June George de que em seu país os professores não têm tempo para pesquisar ou conhecer os saberes locais em profundidade. Segundo ela, a reconstituição desses saberes em sala de aula requer a construção de uma base de dados que corresponda factualmente à realidade e isto é algo que exige atenção, responsabilidade e tempo. Por isso, não tem expectativa de que seja feito pelos professores de ciências, sugerindo o apoio dos pesquisadores da área (George, 1992, p. 107).
No entanto, para alguns professores podem existir facilidades em função de suas experiências de vida. Adams destacou uma pesquisa sobre a história de vida de um professor Jamaicano e as relações convergentes entre suas experiências com a flora e a fauna durante a infância em seu país e sua formação docente/científica no ensino superior (Kozoll e Osborne, 2006). O que a sua menção a esta pesquisa parece sugerir é que as experiências de vida do professor podem facilitar os trabalhos na direção da integração dos saberes culturais locais nas aulas. A autora sugeriu que os educadores se conscientizem da influência de suas visões de ciência sobre o ensino, sugerindo ampliá-las por meio da perspectiva “multiciência” (multiscience).
Dentre as duas experiências de formação docente mencionadas, uma delas se referiu à formação continuada de professores em um workshop de 10 dias conduzido pela pesquisadora Pauline Chinn (2007) no Havaí, que envolveu 19 professores de matemática e ciências do ensino médio provenientes de países Asiáticos e dos EUA. Um dos resultados foi a mudança das visões dos professores sobre os saberes indígenas e o desenvolvimento de uma postura crítica em relação à ausência de perspectivas locais em suas aulas. Uma forma de sensibilizar os professores foi o uso de “métodos de descolonização”.
O segundo curso mencionado foi o de Clifford Knapp (2008): “Integrando Recursos da Comunidade no Currículo e na Instrução” (Integrating Community Resources in Curriculum and Instruction), ministrado em um curso de graduação. Em sua análise deste curso, Adams destacou haverem princípios para que os professores aprendam a utilizar recursos locais em qualquer contexto de ensino. Na referência original, esses princípios foram definidos com base em duas modalidades de educação: “educação experiencial” (experiential education) e “educação com base no local” (place-based education). A primeira se relaciona à construção de conhecimentos, habilidades e valores a partir de experiências diretas e a sua filosofia é tomar consciência do “por que eu faço o que eu faço”. Já a segunda modalidade propõe a utilização de recursos locais como ponto de partida para ensinar e aprender matemática, artes, estudos sociais, ciências e outros assuntos, com a finalidade de melhorar as condições de vida de uma comunidade. Existem associações e redes de colaboração desses dois tipos de educação nos EUA. No caso da educação experiencial, uma delas estabeleceu alguns princípios que provavelmente têm relação com o que Jennifer Adams mencionou, os quais têm por base as seguintes perspectivas e responsabilidades (Knapp, 2008, tradução do autor):
– A aprendizagem ocorre segundo um ciclo formado por reflexão, análise crítica e síntese.
– Os aprendizes são aqueles que tomam iniciativas e decisões, assumem responsabilidade pelos resultados, formulam questões, experimentam, resolvem problemas e constroem significados a partir das experiências.
– Devem ser engajados intelectualmente, emocionalmente, socialmente e “de corpo e alma” em tarefas de aprendizagem autêntica, com estímulo ao desenvolvimento de relações humanas.
– Imprevistos ocorrem e os riscos e incertezas são parte do processo.
– O papel do educador é estruturar experiências adequadas, colocar problemas, impor limites, garantir segurança e facilitar a aprendizagem.
– As oportunidades espontâneas de aprendizagem devem ser encorajadas.
Knnap mencionou que a educação com base no local (place-based education) compartilha dos princípios listados acima, somando-se os seguintes:
– Os fenômenos circundantes fornecem a fundação para o desenvolvimento de um currículo interdisciplinar e contém dimensões ecológicas, multigeracionais e multiculturais.
– Professores e alunos são encorajados a atravessar os limites entre escola e comunidade de modo construtivo variado.
– Espera-se que os aprendizes se tornem criadores de conhecimento, bem como seus consumidores.
– Suas questões têm papel central nesse processo e
– são avaliados considerando como o conhecimento adquirido contribuiu para a qualidade de vida e sustentatibilidade de suas comunidades.
O curso desenvolvido por ele teve cinco metas principais:
1ª) Explorar e aplicar teorias e práticas de educação experiencial e de base local.
2ª) Desenvolver habilidades e atitudes em dinâmicas de grupo, relações humanas e em comunidade.
3ª) Investigar recursos instrucionais locais (pessoas e lugares) usando métodos de aprendizagem experienciais.
4ª) Planejar e elaborar a escrita cooperativa de um livro usando técnicas de jornalismos cultural.
5ª) Ampliar o conhecimento disponível sobre estudos envolvendo recursos instrucionais da comunidade (livros, periódicos, websites).
Ainda referindo-se à formação docente, Adams observou que
(…) a formação de professores para a comunidade ciência deve incorporar métodos que permitam aos professores se engajarem em atividades que os incentive a aprender sobre suas próprias identidades, a explorar as suas próprias crenças sobre a ciência e o ensino de ciências e descobrir o que a ciência significa para os outros, especialmente para os membros das comunidades onde ensinam. (Adams, 2012, p. 1173)
A discussão de temas tais como diversidade cultural, identidade, globalização e relações de poder exercidas sobre os currículos também foi enfatizada, sugerindo que os professores adquiram também conhecimentos de antropologia, sociologia e teoria pós-colonial. O capítulo de Jennifer Adams encerra-se com uma discussão sobre aspectos filosóficos e pedagógicos relativos à sustentabilidade e suas relações com etnia, mídia e cultura na perspectiva de uma formação crítica dos estudantes. Ao final, o movimento da proposta “Comunidade Ciência” foi resumido do seguinte modo: transitar de uma educação de “lugar nenhum” para uma educação de e para “algum lugar”.
A maior dificuldade de implementação da proposta de Adams talvez seja exatamente essa: a transição/substituição de um modelo pedagógico para/por outro radicalmente distinto. O objetivo de “Comunidade Ciência” é aproximar as aulas de ciências do que ocorre na vida dos estudantes ou promover a re/ligação de saberes. É uma resposta à descontinuidade que existe entre escola e comunidade, não somente devido à existirem saberes relacionados às ciências nas culturas dos alunos, mas também pelo fato deles interagirem e aprenderem ciências fora da escola, cabendo rever esse conjunto na escola. Isto não parece ser uma tarefa difícil, mas também não é fácil porque os professores estão acostumados a um tipo de pedagogia que tende a romper com as linguagens e o saberes cotidianos nas aulas de ciências e a privilegiar somente o conhecimento e a linguagem científica. Associar saberes? Considerar outras linguagens? Promover diálogos entre os saberes, linguagens e entendimentos dos alunos e da comunidade com o conhecimento científico? Isto pode não fazer parte da cultura das salas de aulas e grande parte do professorado pode não ter vivenciado experiências prévias que os ajudem a trabalhar desse modo. Talvez seja por isso que Chinn (2007) recomendou o emprego de “métodos de descolonização” na formação continuada de professores. Prevendo haver dificuldades, Adams sugeriu ser possível que os professores desenvolvam “hábitos-mentais” e criem “estruturas” que possibilitem incluir outros saberes e discursos nas aulas, mas June George diz que eles não têm tempo para fazer isto adequadamente. Isto também se aplica aos professores brasileiros, cuja realidade pressiona em outras direções: cumprir o programa curricular e garantir aprovação dos alunos nos exames oficiais para ingresso no ensino superior.
Entretanto, a proposta de Adams é coerente com as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (BRASIL, 2013), que enfatizam o tratamento da cultura brasileira e a vinculação entre educação escolar e sociedade. Essencialmente, essas diretrizes adotam uma perspectiva curricular multicultural, sugerindo o acolhimento dos diferentes saberes e manifestações culturais existentes no país como forma de minimizar o fracasso escolar. Sugere a interação entre os conhecimentos disciplinares e os conhecimentos das culturas populares na escola, de modo a valorizá-las, analisá-las e compreendê-las. Para o ensino médio, em particular, as diretrizes apontam para a dependência entre as dimensões científico-tecnológico-cultural e propõem a integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura na base do desenvolvimento curricular (Ibid., p. 161).
Os hábitos mentais a que Adams se refere estão relacionados à disposição dos professores em usar um tipo de “lente pedagógica” que torne o ensino mais relevante e aberto à inserção de outros saberes e discursos. Isto não significa que o currículo deve ser alterado ou modificado, mas trabalhado de forma diferente. No entanto, se o currículo passar a incorporar outros saberes, discursos, práticas e entendimentos, parece ser impossível que permaneça o mesmo. Como ela mesma disse, o lugar ou local diz muito sobre as pessoas (suas identidades), que recursos estão disponíveis e que tipos de conhecimentos mobilizam. Se considerarmos as realidades locais como sendo heterogêneas e distintas, os currículos voltados para essas realidades também terão suas especificidades. A mudança está na forma de abordar o currículo e aos professores cabe relacionar os conteúdos curriculares às realidades locais. Nesse contexto, a palavra “estrutura” e o verbo “estruturar”, tão frequentes no texto de Adams para se referir ao trabalho docente (“criar estruturas”, “estruturar atividades”, por exemplo), pode sugerir que o professor consiga prever as ações e resultados com relativa facilidade, mas podem acontecer imprevistos. A palavra “estrutura” é interessante por prever relações entre os elementos envolvidos, como é típico de uma “estrutura”, mas pode não ser adequada por sugerir que as relações e os saberes serão sempre os mesmos e que não haverá particularidades locais e individuais ou que não haja o encontro com o inesperado. Criar uma “estrutura” de ensino ou “estruturar atividades” prevendo estabelecer como as coisas serão realizadas, o que será observado e quais as relações entre os saberes é sem dúvida importante para que o professor tenha certo controle e segurança, mas é preciso também haver disposição para que os elementos e suas relações sejam determinados, muitas vezes, nas e pelas interações.
Apesar das dificuldades que os professores terão nesta perspectiva, é difícil negar a relevância de um currículo voltado para as realidades locais como forma de compreendê-las e agir sobre elas. Todavia, podem existir alunos que não tenham interesse ou que se interessem mais pelo saber científico em si mesmo independentemente de qualquer relação com a realidade. Alguns poderão não apreciar aprender ciências através de interações com a comunidade. Por outro lado, o conhecimento voltado para a comunidade pode, de fato, promover maior engajamento e interesse nos alunos. Como as salas de aulas são heterogêneas, os alunos dificilmente terão a mesma relação ou interesse por este tipo de abordagem. Há idiossincrasias e diferentes interesses e estilos de aprendizagem. Além disso, os estudantes transitam por diferentes comunidades e é praticamente impossível considerar todas elas no currículo. Por certo que o diálogo favorece a comunicação, mas há também aqueles que não querem se comunicar ou preferem se expressar através da escrita e outras formas. A percepção dos usos do conhecimento científico na sociedade pode contribuir para elevar seu status ou fazer com que ganhe mais sentido para alguns, mas a visão predominante entre os professores pode ser a de que o conhecimento precisa ser transmitido objetivamente para que os alunos se deem bem nos exames. Alguns sequer imaginam que os saberes locais podem contribuir para o entendimento de questões epistemológicas sobre a ciência ou que o ensino pode ajudar a aprimorar a compreensão das relações entre ciência e sociedade ou mesmo que suas aulas podem contribuir diretamente para melhor a qualidade de vida de uma comunidade. Estas visões da cultura escolar podem implicar em vários obstáculos para o desenvolvimento da perspectiva “Comunidade Ciência” nas escolas.
A experiência do projeto “City-as-Lab” é um exemplo de como os estudantes de ciências podem contribuir para a melhoria das condições de vida de uma comunidade, mas esta não seria mais uma função para a escola e para o ensino de ciências entre tantas outras? Os alunos talvez se sintam mais importantes e úteis ao verem o conhecimento sair dos livros e das aulas para aplicá-los à realidade ou para resolver problemas em suas comunidades, mas o que ocorre nos casos mais difíceis ou mesmo impossíveis de serem resolvidos? Isto não traria frustração ao invés de empoderamento? É claro que a educação em ciências pode e deve promover a transformação social e ajudar a comunidade a melhorar suas condições de vida. O conhecimento científico não deve servir somente aos exames, mas ajudar também as pessoas a resolverem os seus problemas. O que os alunos vivenciam na comunidade deve ser levado para a escola, mas também o saber escolar deve ir para a comunidade. Parece difícil se opor à formação de professores e alunos na perspectiva de integração dos saberes da comunidade nas aulas, mas mais difícil é acreditar que os professores irão mudar suas formas de ensinar. Um olhar mais atento para as experiências descritas por Adams mostra intervenções ou iniciativas realizadas, em sua maioria, por pesquisadores ou acadêmicos. Onde estão as experiências realizadas por professores de ciências? Eles seriam capazes de realizá-las independentemente?
Em sua proposta, Adams atribuiu várias tarefas aos professores: adquirir conhecimento sobre as linguagens dos alunos e sobre os saberes e práticas da comunidade; serem capazes de promover diálogos entre diferentes linguagens, ideologias e saberes; terem conhecimentos de antropologia, sociologia e pós-colonialismo; desenvolver uma visão multiciência; aplicar e usar o conhecimento científico para resolver problemas da comunidade; promover a sustentabilidade local; resolver conflitos entre as visões culturais dos alunos e da ciência; identificar como as pessoas usam o conhecimento científico e o que sabem sobre a ciência, entre outras. Em uma entrevista, ela disse que não espera que os professores adquiram todos esses conhecimentos por si mesmos, mas que os formadores de professores propiciem tal formação. Segundo ela, os professores estão mais preocupados com os conteúdos e a pedagogia e é quando esta última entra em jogo que o formador pode ajudar a estabelecer um quadro de referência que permita considerar a existência de diferentes modos de pensar a ciência nas aulas. Ao adquirirem certa disposição, os professores passam a ter maior consciência e abertura para os saberes que os alunos trazem e expressam nas aulas. Neste contexto, a formação deve prepará-los para saber como trabalhar com isto:
É importante que o formador de professores introduza esses conceitos ao professor e seja capaz de ter esse diálogo com os professores sobre os conceitos e da mesma forma aprecie o que estão vendo em sala de aula e o que podemos fazer como educadores para tornar este tipo de aprendizagem mais relevante para os alunos (Adams, 2015, comunicação pessoal).
As noções de ciência como um contexto e ciência contextualizada foram definidas por ela como “duas faces da mesma moeda”. A primeira se refere ao desenvolvimento de um olhar ou ao uso de “lentes científicas” para observar o mundo, analisar evidências, formular perguntas, ter curiosidade e ciência contextualizada implica em ver como a ciência é usada para resolver problemas cotidianos em uma comunidade. A visão de mundo “multiciência” (multiscience) que se espera que os professores adquiram foi estabelecida originalmente pelo pesquisador japonês Masakata Ogawa (1995) para se referir à existência de pelo menos três tipos de ciência ou percepções racionais da realidade nas salas de aula: a ciência individual de cada aluno, a ciência indígena ou de gupos culturais presentes na sociedade e a ciência moderna ocidental. Para Adams, uma visão “monociência” (monoscience) irá considerar somente a ciência moderna como autoridade hegemônica enquanto que uma visão “multiciência” reconhecerá a ciência como uma cultura particular, seja a ciência moderna ou a ciência indígena, por exemplo. Dependendo de cada cultura ou modo de olhar irão agir diferentemente. Um professor que tenha uma visão de mundo “monociência” tenderá a desprezar ou desconsiderar a existência de outros modos de conhecer, enquanto que outro que tenha uma visão de mundo “multiciência” terá maior disposição ao reconhecimento e valorização de outras maneiras de ver o mundo em suas aulas. A visão de ciência se expande nesta última perspectiva e é mais receptiva ao reconhecimento de que as pessoas usam outros saberes para resolver seus problemas. Os professores de ciências com este tipo de visão tenderão a considerar suas aulas como espaços híbridos de encontro e fusão de diferentes ciências ou culturas.
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Referências
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