Análise de “Procurando resgatar a química nos saberes populares”

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“Procurando Resgatar a Química nos Saberes Populares” é o décimo primeiro capítulo do livro “A Educação no Ensino da Química”, publicado em 1990, e que integra a “Coleção Ensino de 2° Grau” da Editora Unijuí.  O autor, Attico Chassot, reuniu artigos, excertos de textos, palestras reescritas e aulas lecionadas em várias instituições para compor as 118 páginas deste livro, que se distribuem em 12 capítulos. Segundo ele: “Este livro quer ser uma conversação sobre o que se pode fazer e como se pode fazer Educação através da Química” (Chassot, 1990, p. 9). Seus capítulos tratam de temas variados e podem ser lidos independentemente.

O capítulo aqui desconstruído é o único do livro a tratar do ensino de Química por meio dos saberes populares. É um texto de seis páginas que vem “mostrar uma linha de trabalho relativamente nova da Educação Química: o resgate de saberes populares” (Id, p. 103). Tudo indica que esta foi a primeira publicação sobre o tema feita no Brasil em um livro. O que o autor enfatiza? Chassot inicia tecendo uma crítica ao modo tecnicista e formal de fazer pesquisas em Química e Educação, apontando a pesquisa participante ou pesquisa-ação como forma alternativa e válida para romper com este modelo. Logo no início apresenta os pressupostos básicos deste tipo de pesquisa, citando-os a partir do livro Metodologia da pesquisa-ação de Michel Thiollent (1985). Tais pressupostos tratam da interação entre pesquisador e comunidade para a identificação conjunta de problemas, a tomada de consciência e o desenvolvimento de ações concretas segundo uma ordem de prioridades. Sob esta perspectiva, ele apresenta a sua proposta:

A proposta que se defende implica na necessidade de resgatar a Química que está inserida na realidade física e social vivenciada pelos alunos (ou em outras realidades) e analisar com eles, de forma dialógica, os diferentes significados atribuídos e as diferentes formas de construção do conhecimento (Id, p. 104).

Diz que sua experiência ainda é incipiente, mas menciona experiências prévias em um curso de licenciatura em Química e em cursos de especialização. Enfatiza que “um pressuposto importante é trabalhar criticamente a ciência do cientista, a ciência da escola e a ciência popular” (Id, p. 104) e que estas possuem características próprias, interações, “descréditos múltiplos”, “resistências e incompreensões” (Id, p. 105). Em seguida, inicia uma discussão apontando a escola e a Universidade como locais de reprodução de conhecimento e que em relação ao resgate de saberes populares existe um “redescobrir” que implica também em produção de conhecimento. Sua crítica mais veemente é que a escola falha por não cumprir duas importantes funções, de caráter pedagógico e político: “A escola não só vira as costas para o saber popular, como o despreza no cortejar que faz ao saber institucionalizado”. Propõe, contrariamente, um novo assumir à escola: “a defesa dos saberes da comunidade onde está inserida” (Id, p. 105).

Chassot dá alguns exemplos desses saberes na sequência de seu texto e aponta um caminho metodológico para as ações em sala de aula: levantar as fontes dos saberes, analisá-los criticamente, observá-los com respeito, realizar entrevistas e documentação audiovisual, buscar explicações por meio do saber institucionalizado e realizar uma análise comparativa entre os saberes, “surgindo geralmente o confronto entre como a comunidade resolve o problema e como a ciência institucionalizada explica ou não a referida prática” (Id., p. 106). Dada a sua visão da dificuldade que pode existir na busca das explicações científicas para os saberes populares, menciona a necessidade de haver um constante ir e vir, e ressalta a necessidade de haver formação do professor para as interações com a comunidade, nas quais é preciso haver proteção e ausência de preconceitos de ambas as partes e atenção para os conflitos existentes. Embora reconheça o estímulo que isto pode oferecer, o mais importante para ele não é buscar uma alternativa para ensinar os conteúdos escolares, mas buscar soluções para os problemas identificados (Id., p. 106).

O autor chama atenção para os seguintes aspectos na escola: os conteúdos escolares a serem explorados podem ser os usuais e também outros e os alunos podem passar a adquirir “uma visão mais depurada de mitos e falsos conceitos”. Na comunidade podem haver contribuições no sentido de melhoria das ações e compreensão de seus porquês. Em sua proposta, Chassot afirma a importância de desenvolver duas posturas na formação de professores: dar atenção para os locais onde os saberes populares ocorrem, sugerindo ser difícil prever por estarem onde “menos suspeitamos”, e eliminar os preconceitos na investigação dos saberes na comunidade, destacando que há sempre uma relação com as explicações da ciência. Ao final, oferece exemplos concretos de investigações realizadas em cinco universidades brasileiras, destacando uma pesquisa feita por uma aluna sua sobre os saberes dos carvoeiros na região de Porto Alegre, onde surgiram questões para elucidação científica e problemas levantados pelos carvoeiros.

Após descrever resumidamente o conteúdo do capítulo “Procurando Resgatar a Química nos Saberes Populares”, a primeira questão que me veio à mente é por que o autor se refere à necessidade de “resgatar” a Química no meio em que vivem os alunos? Estaria ele se referindo a um ato de salvação de algo que está se perdendo? Outra pergunta é: a que Química se refere? A relação entre o título do capítulo e a citação destacada anteriormente (p. 104) me deixou um pouco confuso. Por um lado, parece se referir à Química tal como a conhecemos. Por outro, sugere haver uma “outra Química”, já que existem “diferentes significados” e “formas de construção do conhecimento”, mas, a ciência Química, tal como a conhecemos atualmente, a que é normalmente ensinada na escola, desenvolvida em laboratórios, indústrias, centros de pesquisa e Universidades, não é a única Química existente? Estaria o autor se referindo à Química desenvolvida nesses espaços fora da escola e que também faz parte da vida dos estudantes, já que muitos deles trabalham em indústrias, laboratórios farmacêuticos ou locais semelhantes? Ou estaria se referindo a procedimentos baseados em fenômenos químicos vivenciados no dia a dia, como, por exemplo, preparar um café, cozinhar um alimento e lavar roupas? Quais seriam, então, os “diferentes significados” e as “diferentes formas de construção de conhecimento” presentes nesses procedimentos? O autor está se referindo à forma como as pessoas significam esses fenômenos e que pode não ter relação com o conhecimento químico?

Chassot parece se referir à Química do saber popular, que ele também chama de “ciência popular”. As fontes dadas em seu texto (p. 105) se referem às atividades de produção e conservação de alimentos, de carvoaria, ferraria, meteorologia, tecnologias alternativas (olarias, indústrias de fundo de quintal etc.) e outras. O que é possível inferir acerca dos exemplos dados é que se tratam de práticas variadas, associadas à sobrevivência, formas de produção ou trabalho e fonte de renda. Envolvem procedimentos alternativos, também, mas o conjunto não parece configurar uma “ciência” ou uma “outra Química”, já que o autor não fornece evidências para que possam ser assim consideradas. A maior parte das práticas mencionadas envolve fenômenos químicos, mas somente pelos exemplos fica difícil considerá-las como sendo ciência, me parecendo ter mais relação com tecnologias.

O autor enfatiza se tratarem de procedimentos sábios e inteligentes, embora fadados à extinção e que contêm relações com a Química escolar. Apresenta, assim, suas justificativas para inseri-los no currículo. Contudo, tais procedimentos têm uma história própria e distinta daquela da ciência Química, e significados próprios, os quais, por isso, devem ser colocados em diálogo na escola, de modo a cumprir uma função pedagógica e política importante. Percebemos em Chassot a melhor das intenções em relação a dar atenção para os saberes da comunidade e resolver os seus problemas, mas a função pedagógica da escola, essencialmente, não é transmitir ou promover os saberes científicos? Não é através desses saberes que os alunos poderão melhorar as suas vidas e de suas comunidades, cumprindo assim, também, a função política da escola? Não são esses saberes que irão permitir explicar a realidade de modo confiável? Não é a escola um local relevante, senão, talvez, o mais para a difusão dos saberes científicos? Estaria Chassot propondo exatamente isso? Uma forma de levar os saberes científicos à comunidade?

Em sua proposta, no entanto, propõe fazer isto de modo crítico, mas como?  O que significa “trabalhar criticamente a ciência do cientista, a ciência da escola e a ciência popular” (p. 104)? Isto não poderia ser realizado de outra forma? Não seria suficiente dar atenção a esses saberes ou abrir espaço para eles nos currículos? Em termos metodológicos, o que parece ser um trabalho crítico para o autor é o momento onde ocorre um “confronto entre como a comunidade resolve o problema e como a ciência institucionalizada explica ou não a referida prática” (p. 106), ou quando aponta a necessidade de haver uma discussão com os licenciandos sobre a necessidade de haver respeito e ausência de preconceitos nas interações com a comunidade. O trabalho crítico seria colocar os saberes em confronto e refletir sobre a postura adequada nas relações com a comunidade. A existência de “descréditos múltiplos”, “resistências e incompreensões” também foram mencionados, assim como a possibilidade dos alunos, com esta experiência, adquirirem “uma visão mais depurada de mitos e falsos conceitos”. O trabalho crítico estaria, assim, na posição de relacionar os saberes, compará-los, identificar conflitos e reformular conceitos errados, ao passo que em um trabalho não crítico os saberes não seriam comparados, os conflitos não seriam percebidos e as visões distorcidas não seriam corrigidas. Os saberes seriam vistos mais ingenuamente, sem questionamentos, problematizações, reflexões e exigências.

Entretanto, não seria uma contradição propor que a escola defenda os saberes da comunidade e, ao mesmo tempo, promova uma “visão mais depurada de mitos e falsos conceitos”. Neste segundo caso, não estaria agindo mais na direção de eliminar visões distorcidas? Isto não implicaria em alterar os saberes da comunidade ao invés de mantê-los como são? O autor sugere uma relação ambígua: ao mesmo tempo que defende e inclui saberes, rompe e exclui outros, revelando uma tarefa que exige atenção e delicadeza. A escola funcionaria, assim, como um filtro, preservando o que há de bom e verdade na tradição popular, mas também modificando partes da mesma. Já na escola que se quer ver “antiga” as coisas ficariam como são: tradições e saberes populares à deriva.

A escola é enfaticamente atacada por Chassot em seu texto: não cumpre sua função pedagógica nem política, seu currículo é fechado, não promove interações com a comunidade e não se interessa por seus problemas, assim como também não lhe interessa identificar e corrigir visões distorcidas advindas da comunidade. Esses elementos fazem parte da retórica do autor para convencer o leitor da necessidade de “resgatar a Química nos saberes populares” e uma de suas frases de maior impacto nesta direção, é: “A escola não só vira as costas para o saber popular, como o despreza no cortejar que faz ao saber institucionalizado” (p. 105). A frase em questão deve ter tido um efeito expressivo em todos aqueles descontentes em relação a escola brasileira, o ensino de química e o fracasso escolar. Poderíamos imaginar como seria se invertêssemos esta frase? Vejamos como ficaria: A escola não só vira as costas para o saber institucionalizado, como o despreza no cortejar que faz ao saber popular. Nesta última, teríamos a situação contrária, onde o saber popular é o que seria enfatizado pela escola, porém, com perdas pela ausência de relações com o saber científico. A sociedade formada por indivíduos nesta situação seria uma sociedade fadada a permanecer em suas tradições, ao passo que na frase do autor irá perdê-las. Caberia atribuir mais esta função à escola? A de “resgatar” saberes do povo?

Dentre as justificativas para fazer isso está a possível extinção dos saberes populares e a necessidade de corrigir suas partes deficientes. A primeira faz sentido se estivermos falando de um comprometimento com a sociedade para preservar parte da cultura e ajudar na resolução de problemas. O autor atribui essas funções à escola e adverte se não for cumprida. Já a segunda justificativa é aquela que promulga o saber científico como sendo capaz de explicar a realidade de modo mais apropriado e corrigir as “crenças tortas”. Nada mais produtivo, nesta direção, do que trazer a cultura popular para a escola, onde abundam crenças e superstições que necessitam ser revistas.

O agente central dessas ações, no entanto, é o professor e não a escola. É o professor quem desenvolve o currículo, quem promove (ou não) interações com a comunidade e quem “endireita” visões erradas. Assim, é ele quem exclui o saber popular de suas aulas porque privilegia exclusivamente o saber científico. É ele quem está deixando de cumprir uma função pedagógica e política importante ao desprezar a comunidade local e seus problemas. Todavia, Chassot não menciona o “professor” em nenhum momento de seu texto. Não faz isso porque é este sujeito que ele quer convencer sobre sua proposta. De outro lado, não menciona que os professores agem assim porque foram educados deste modo, e mesmo que ocorram experiências de formação como as relatadas em seu texto, não prevê as dificuldades que terão, ou que têm, para realizar trabalhos dessa natureza. Afinal, qual professor irá resgatar o saber popular em suas aulas de Química se alguns desses saberes são difíceis de serem explicados ou se não sabe explicá-los? Qual professor está preparado para trabalhar criticamente a ciência do cientista, a ciência da escola e a ciência popular”? Que significado a palavra “ciência” tem para os professores nesse contexto? Como fazer isto em salas de aula com mais de 40 alunos e em várias turmas ao mesmo tempo? E com que benefícios, já que as experiências ainda são incipientes?

Apesar desses questionamentos, este primeiro texto de Chassot sobre os saberes populares no ensino de Química teve um impacto positivo na comunidade de educadores e pesquisadores do ensino de Química no Brasil, já que desde a sua publicação observamos haver grande aceitação e abertura para esta proposta. Em nosso conhecimento, até hoje não houve posicionamento contrário, mas também não houveram críticas e nem avanços significativos em termos de investigações de experiências reais realizadas em salas de aula.

Referência

CHASSOT, A. I. Procurando resgatar a Química nos saberes populares. In: CHASSOT, A.I. A Educação no Ensino da Química. Ijuí: Unijuí, 1990, p. 103-108.