A linguagem é uma forma importante de comunicação entre os seres humanos e pode se dar de forma tanto verbal como não verbal. Conforme estabelecido pelo linguista Ferdinand de Saussure, quando nos comunicamos por palavras, seja na forma escrita ou oral, a comunicação se estabelece segundo um sistema de signos que relacionam elementos reais, percebidos sensorialmente, e elementos conceituais, ideias que fazemos. Assim, os signos linguísticos se constituem por dois elementos principais: significante e significado. O primeiro relaciona-se à forma como a palavra é escrita, à sequência de letras que a constitui, também chamada de imagem acústica do objeto; já o significado se refere à ideia que temos ou associamos a esta palavra. Esta relação entre significante e significado é arbitrária, já que cada indivíduo cria seus significados próprios. Para evitar confusões, alguns acordos são estabelecidos dentro de cada área disciplinar, de modo que o significado de um signo possa ser relacionado diretamente ao seu referente real. Mesmo assim, podem haver desajustes. Se um emissor/autor, por exemplo, menciona a necessidade de realizar um “trabalho crítico” em sala de aula, mas não traduz o significado disso, o receptor/leitor irá criar a sua própria ideia ou imagem, que pode ser bem distinta daquela do referente real ou da intenção do emissor/autor e é no problema da relação entre as palavras e as coisas que está um pressuposto básico da desconstrução: a crença que o significado original é sempre obscurecido por sua transmissão e precisa, portanto, ser aberto à significação (Martinengo, 2012, p. 16). Para os desconstrucionistas, a linguagem tem uma natureza deslizante/derrapante, tornando impossível precisar seus significados ou concebê-los corretamente. A crença que as palavras se referem diretamente às coisas é, portanto, ingênua.
A desconstrução foi proposta originalmente pelo filósofo francês Jacques Derrida, destacando-se, nessa perspectiva, seu livro “Of Grammatology” (Derrida, 1976). Sua lógica está intimamente relacionada ao conceito de signo linguístico dado por Saussure e à sua percepção da arbitrariedade entre significado e significante. Assim, para Derrida, o signo linguístico representa um lugar de diferença, onde palavra e coisa, signo e interpretação nunca são os mesmos. Derrida jogava constantemente com esta descoberta, de que o signo marca um lugar de diferença. Porém, enquanto a semiologia de Saussure se restringe à oposição binária entre significado/significante, Derrida coloca estes termos sous rature em sua análise, ou seja, “sob apagamento”. Ele escreve uma palavra, faz um X sobre ela e imprime ambas, a palavra e sua eliminação, pois embora a palavra seja imprecisa, ela é necessária e deve permanecer legível. Esta ideia de “apagamento” é análoga ao jogo de desfazer/preservar que caracteriza o pensamento de Derrida e o difere do de Saussure. Para descrever a estrutura do signo, que para ele é tanto deferência (atenção, respeito) como diferença, ele cunhou o termo differance para se referir a um “jogo sistemático das diferenças, do traço das diferenças, do espaçamento através do qual os elementos se relacionam uns com os outros” (Atkins, 1983, p. 17).
Os problemas centrais da teoria literária também estão no cerne da desconstrução: a relação das palavras com as coisas; a certeza do conhecimento, das verdades absolutas, dos significados de um texto (o texto tem algum significado estável independente do leitor?), a questão das interpretações, da intenção do autor (sua perspectiva controla os significados?). Para os desconstrucionistas, as palavras não se referem às coisas, mas significam outras palavras; os textos literários não possuem um significado claro enunciável; os autores não criam significados em seus textos, suas intenções não os determinam, são os leitores que fazem isso; os textos não possuem um significado particular, mas são ilimitados em sua significação; uma leitura cuidadosa não propicia conhecimento de um texto, porque todas as leituras levam à más interpretações ou a nenhuma interpretação final (Ellis, 1989, p. 139).
Compreendida como estímulo do pensamento, re-edição de formas antigas de ceticismo, destruição seguida por reconstrução (Martinengo, 2012, p. 2), atividade de análise, reflexão, pensamento, estímulo e aprimoramento de ideias (Ellis, 1989, p. 153, 154), estratégia particular, um tipo de lógica de investigação, uma atuação diferenciada (Ellis, 1989, p. 147), uma forma de leitura, interpretação hermenêutica e não hermética que não se deixa escravizar, mas problematiza e questiona (Atkins, 1983, p. 3), a leitura desconstrutiva vê o texto como um espaço aberto, uma oportunidade de significação. Busca localizar seu “umbigo” ou princípio intencional, aquilo que determina o interfuncionamento mútuo de suas partes componentes (Atkins, 1983, p. 10). “O que está sendo feito no que está sendo dito”? Qual é a função performativa da linguagem e qual é o ato performativo do texto? O que o texto propõe fazer e de que modo faz isto? Distinta de outros modos de leitura que tendem a situar os textos espacialmente, a desconstrução traça um movimento temporal, expondo a instabilidade das palavras, a impossibilidade temporal do significante e do significado, do literal e do figurativo, do performativo e constativo, mas sem a intenção de recuperar o descompasso entre eles e fazê-los coincidir. A desconstrução tem a ver com “oscilações na significação”. O movimento é, no mínimo, duplo. O texto desconstrutivo conta a história deste conflito, mas não se restringe a duas posições completamente diferentes e separadas: na verdade, a relação é triangular, não polar. Há sempre um terceiro termo que relaciona os dois, através do qual se encontram. É o que Derrida chamou de traço, suplementaridade ou differance (Atkins, 1983, p. 11)
Para Ellis (1989, p. 137), a desconstrução começa focalizando o ponto de vista ingênuo do senso comum sobre um assunto particular, de modo a miná-lo, colocá-lo em questão e problematizá-lo posteriormente. Em outras palavras: a leitura tem início como de costume, descrevendo/aceitando prontamente as ideias sem questioná-las. Depois, move-se na direção das ideias opostas, sem distorcer o texto, mas rejeitando as ideias originais. Isto não implica em romper com o que o autor está dizendo, tampouco em manter uma hierarquia na direção oposta ao deslocar o termo “maior” (enfatizado pelo autor) pelo “menor” (identificado pelo leitor desconstrutivista) na situação privilegiada do deslocado. Como intervenção, consiste em um desfazer/preservar que produz uma reversão incessante, uma oscilação dos termos hierárquicos (Atkins, 1983, p. 5). Este movimento na direção do polo oposto, sem distorcer o texto, porém rejeitando-o, substitui a lógica do “nem um nem o outro” ou do “esse ou aquele” por: “não esse, mas aquele”. Aqui, enquanto a intenção do autor está presente e restringe, a textualidade libera (Ellis, 1989, p. 139). Assim, as ideias originais são invertidas, de um extremo ao outro, onde o segundo termo ou ideia substitui o primeiro ou desloca-o, provocando-o, rompendo com o mesmo, subvertendo-o, desmascarando-o, desmantelando-o, expondo-o, desafiando o que é enfatizado (Id, p. 140). Isto, no entanto, implica em uma formulação dinâmica dos extremos opostos, uma discussão que oscila entre os seus significados. Assim, o primeiro passo é focalizar o sentido mais literal, superficial de um texto, evitando qualquer atenção para suas sutilezas. O passo seguinte é demonstrar que existe uma segunda camada de significado, uma camada irônica, figurativa, metafórica, ao invés do significado literal. Na etapa final, qualquer discrepância entre os níveis de significação textual é posta de modo dramático e provocativo, criando uma ilusão do pensamento original (Ellis, 1989, p. 143, 144). Esta substituição de um termo por outro pode mudar a substância do argumento e, muitas vezes, requer argumentar contra a mudança mostrando que os termos substituintes são funcionalmente diferentes. Por isso, nem sempre é necessária a substituição de um termo pelo outro, já que dois termos diferentes podem não desempenhar exatamente a mesma função em todos os contextos, mas podem desempenhar as mesmas funções em alguns contextos, que podem ser aquelas dominantes e mais relevantes à disputa entre o desconstrucionista e o autor, seu oponente. Os termos são substituídos desde que isso seja relevante para o argumento em consideração, e, de qualquer modo, as discrepâncias entre os dois termos têm que ser discutida (o que foi alterado com isso?) (Ellis, p. 145, 146). Algumas vezes é possível contrastar as frases do autor com suas equivalentes opostas e verificar o que foi perdido e onde está discrepância entre os dois. As formulações são colocadas lado a lado para demonstrar o que se perdeu na transição de uma para outra (Ellis, 1989, p. 147). Assim, as posições familiares passam a ser vistas como nem tão familiares e as ideias relevantes não tão obviamente relevantes. O ataque sobre a teoria de referência é traduzido em ataque à “metafísica da presença”, às palavras e ideias originais do autor (Ellis, 1989, p. 142).
Os desconstrucionistas veem a desconstrução como uma disputa provocativa, corajosa, inovadora, sofisticada e um desafio ao status quo por meio de ideias radicais perturbadoras. Sua natureza é mais teórica e é aí que ocupa um espaço mais importante. Contudo, Ellis sugere uma inspeção mais cuidadosa desses aspectos e argumenta que o único sentido em que a desconstrução representa mudança é em dar uma nova forma e uma força renovada às ideias e atitudes pré-existentes (Id, p. 153). Como uma atividade crítica, a desconstrução não é como a ciência e não conduz a resultados claros e objetivos. Uma boa crítica é estimulante ao invés de verdadeira e este estímulo pode ocorrer de várias formas diferentes (Id, p. 154). A crítica ilumina os textos de muitos ângulos e muitas perspectivas distintas podem ter valor em suas próprias direções. Todas podem lançar luzes sobre o texto, diferentes tipos de luzes. Existe um grau de liberdade neste empreendimento, na medida em que as características individuais do crítico, sua personalidade e o ponto de vista são elementos importantes (Id, p. 154). As pessoas podem ser afetadas pelo trabalho literário de diferentes modos e, portanto, devem ser livres para trilhar diferentes caminhos. Por isso, não se pode dizer que existe uma resposta certa ao texto, mas uma tendência a permitir que cada crítica ilumine diferentes faces do mesmo. A crítica é julgada menos pela força de seu argumento do que pelas qualidades de imaginação que coloca e pelo estímulo que dá à imaginação própria do leitor (Id, p. 155). Uma boa crítica não está necessariamente vinculada à descoberta do significado de um texto (Id, p. 154), mas em deixar para trás a “ingenuidade da multidão” e operar em um plano intelectual mais sofisticado. A ingenuidade é o ponto de partida da desconstrução, e seu movimento seguinte é tanto emocional como intelectual para uma posição que difere, tanto numa direção como em outra. Existe um componente emocional nesta tarefa, uma excitação de progresso intelectual além do lugar comum e uma alegria de caráter provocativo. E não há necessariamente uma apropriação lógica ou intelectual, as formulações são escolhidas pelo drama e choque que estabelecem (Ellis, 1989, p. 141, 142).
Em nossa análise, a finalidade é identificar elementos importantes para a formação de professores em relação à inserção de saberes populares nas aulas de ciências, ou de química, em particular. A análise gira ao redor de duas questões centrais : 1ª) Que contribuições o autor dá neste sentido? 2ª) O que os professores pensam a respeito? No segundo caso, provoca o pensamento reflexivo e identifica questões específicas a serem endereçadas aos professores. No primeiro, as contribuições do autor são analisadas reflexivamente, do seguinte modo:
– Antes da leitura, são definidas algumas palavras de atenção: princípio, importante, relevante, principal, estratégico, fundamental para a formação de professores. Estas palavras marcam partes do texto que podem (ou não) remeter diretamente aos elementos que o autor enfatiza para a formação de professores. Outras palavras de atenção também podem surgir durante a leitura, o que depende do conteúdo do texto.
– Nas primeiras leituras, procura-se identificar o “umbigo” do texto, o aspecto central, o foco do autor. A identificação de dicotomias ou pares binários ajuda nesta direção, além de propiciar uma visão geral das ideias apresentadas no texto. Os binários ou dicotomias referem-se ao que o autor enfatiza e o que se opõe à sua ênfase. Por exemplo: se o autor enfatiza a necessidade de resgatar saberes populares, um dos pares do binário é “saberes populares”, e o seu oposto: “saberes científicos”. O autor enfatiza o primeiro elemento do par e a análise identifica o componente oposto: saber popular/saber científico. Durante as leituras iniciais, as palavras de atenção também podem ser marcadas/destacadas no texto, tornando mais fácil localizar as partes onde estão as considerações relevantes para a formação de professores. Ao final, procura-se responder às seguintes perguntas: Qual é o “umbigo” do texto? Quais são as dicotomias observadas (os binários)? Que trechos do texto se relacionam às palavras de atenção e tem relação com a formação de professores? As respostas são anotadas e transcritas.
– Nas leituras seguintes, as ideias principais do autor são problematizadas, colocadas em questão e é onde também ocorre a substituição da palavra/ideia enfatizada por sua oposta. Isto pode ser feito mostrando como ficaria a frase do autor com inversão de sua ideia ou na própria discussão. Nesta análise, procura-se perceber que significados emergem, o que se perde, que questões/dúvidas/reflexões podem ser estabelecidas. O trabalho não se completa, no entanto, sem que haja uma oscilação, um vai e vem entre as ideias, ou seja, na direção da ideia oposta e retomando a ideia do autor e novamente. Ora numa direção, ora noutra.
– As leituras podem também indicar elementos da retórica do autor, a forma como ele constrói o seu texto, as estratégias usadas para convencer o leitor ou mesmo distrair sua atenção, visto que além da análise conceitual a desconstrução também atua neste sentido. Que estratégias ele usa para fazer com que suas ideias sejam aceitas? Onde se desvia do assunto principal e como faz isso?
– Ao final produz-se um texto. Primeiro é feita uma descrição do texto analisado, destacando suas partes, ideias e como foi organizado pelo autor. Depois, mostra-se qual é o seu “umbigo”, a intenção central do autor percebida na análise. Em seguida, realiza-se a análise desconstrutiva e propõem-se, ao final, questões para ouvir autor e professores.
A literatura escolhida para esta atividade envolve temáticas variadas relacionadas ao ensino de ciências e os saberes de comunidades locais. Veja abaixo a descrição e análise de algumas publicações. A análise desconstrutiva envolve a identificação de dicotomias ou pares binários típicos do pensamento Ocidental. Algumas vezes estes pares são mencionados e discutidos pelos próprios autores. Noutras, ocorre a ênfase em um aspecto e o seu oposto é identificado com a inversão dos binários na análise. Os pares identificados em cada texto são fornecidos abaixo em arquivo a parte, oferecendo uma ideia do conteúdo de cada texto. Novas leituras serão disponibilizadas em breve. Aproveite!
– Análise de “Out of Place: Indigenous Knowledge in the Science Curriculum”. Autoras: Elizabeth McKinley e Georgina Stewart/Nova Zelândia. Fonte da publicação: Second International Handbook of Science Education/2012.
Clique aqui para acessar uma apresentação em PowerPoint mostrando algumas dicotomias presentes neste texto. Acione o modo de exibição de slides para ver as palavras em movimento.
– Análise de “Respect and Science Learning”. Autoras: Adriane Slaton e Angela Calabrese Barton/Estados Unidos. Fonte da publicação: Second International Handbook of Science Education/2012.
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– Análise de “Community Science: Capitalizing on Local Ways of Enacting Science in Science Education”. Autora: Jennifer D. Adams/Estados Unidos. Fonte da publicação: Second International Handbook of Science Education/2012.
Clique aqui para acessar uma apresentação em PowerPoint mostrando algumas dicotomias presentes neste texto. Acione o modo de exibição de slides para ver as palavras em movimento.
– Análise de “Procurando resgatar a química nos saberes populares”. Autor: Attico Chassot. Fonte da publicação: livro A Educação no Ensino da Química.
Referências
Atkins, G.D. Reading Deconstruction Deconstructive Reading. Lexington: The University Press of Kentucky, 1983.
Derrida, J. Of Grammatology. (Trad. Gayatri Spivak). Baltimore/Londres: The John Hopkins University Press, 1976.
Martinengo, A. Beyond deconstruction: from hermeneutics to reconstruction. Munchen, DEU: Walter de Gruyler, 2012.
Ellis, J.M. Against Deconstruction. Princeton: Princeton University Press, 1989.