O hibridismo na educação em ciências

Estudos sobre a interseção, integração ou diálogo entre diferentes saberes e discursos vêm sendo observados na educação em ciências já há algum tempo e de certa forma se relacionam ao debate estabelecido entre multiculturalistas e universalistas (Mckinley; Stewart, 2012; Pinheiro, 2017; Stanley; Brickhouse, 1994; Van Eijck; Roth, 2007) sobre a inclusão ou não de outros modos de conhecer nos currículos. Destacam-se, nesse contexto, as experiências de reconhecimento, valorização e inclusão dos chamados “fundos de conhecimento”, as quais, em sua maioria, se voltam para o letramento científico dos estudantes.

Há cerca de duas décadas, no entanto, em grande parte devido à influência do hibridismo pós-colonial (Bhabha, 1998), alguns acadêmicos vêm reconhecendo que as experiências envolvendo os “fundos de conhecimento” configuram espaços híbridos e o “terceiro espaço” se tornou uma denominação recorrente e, assim, essas duas abordagens passaram a “andar juntas” nas publicações. Embora constituam abordagens antropológicas distintas para a educação em ciências (Carlone; Johnson, 2012), ambas estão relacionadas à promoção de justiça social em contextos de inclusão de estudantes de grupos minoritários ou em situação de desigualdade econômica e social.

São formas de educação culturalmente responsiva ou que reconhecem e valorizam o papel dos saberes e práticas culturais dos estudantes nas aprendizagens (Moje; Hinchman, 2004). Não é que outros estudantes não sejam também beneficiados nessas experiências, mas é especialmente crítico o desafio de melhorar a educação de jovens cujas experiências não são tradicionalmente valorizadas nas escolas (Moje et al, 2001, p. 39).

As experiências envolvendo os “fundos de conhecimento” se apoiam na teoria da diferença cultural, cuja suposição é que a cultura escolar reflete as estruturas de poder da cultura dominante. Nesta teoria, os “fundos de conhecimento” são vistos como adaptações locais de modos de vida construídos e transmitidos ao longo de gerações, frente às influências sociais, econômicas e políticas, mas tendem a se restringir às relações de comunicação nas experiências escolares.

As experiências com o hibridismo/terceiro espaço, por outro lado, tendem a ser mais críticas e questionadoras e operam na perspectiva que os antropólogos denominam por “produção cultural” (Carlone; Johnson, 2012). As duas abordagens, no entanto, negam a associação entre baixo desempenho escolar e o déficit da realidade de vida familiar e cultural de alguns estudantes (Gonsalves; Seiler; Salter, 2011; Hogg, 2011).

Uma revisão de literatura sobre os “fundos de conhecimento” foi realizada por Hogg (2011) desde as suas origens, revelando 50 publicações em língua inglesa (37 artigos e 11 capítulos de livros), dentre os quais oito relacionadas à educação em ciências (Conant et al., 2001; Basu; Barton, 2007; Barton; Tan, 2009; Bouillion; Gomez, 2001; Hammond, 2001; Moje et al., 2004; Upadhyay, 2005; Upadhyay, 2009).

Na origem desses estudos, situam-se as experiências de letramento em Inglês realizadas por acadêmicos da Universidade de Tucson, no Arizona/EUA, desde o final da década de 1980, envolvendo estudos etnográficos com a participação de professores em comunidades mexicanas residentes nos EUA e a proposição de currículos e atividades escolares de letramento.

Em sua concepção inicial, os “fundos de conhecimento” foram usados para se referir a uma ampla variedade de conhecimentos e habilidades domésticas observadas na vida familiar e comunitária dos estudantes, com conexões históricas, sociais e culturais relevantes para a aprendizagem e o desenvolvimento curricular (Moll; Vélez-Ibáñez; Greenberg; Andrade; Dworin; Saavedra; Whitmore, 1990; Moll; Amanti; Neff; Gonzalez, 1992). Estudos posteriores procuraram ampliar essa concepção, considerando ainda as diversas atividades, interações, hábitos, interesses, valores e contextos que fazem parte da vida diária dos estudantes (Barton; Tan, 2009; Hogg, 2011; Upadhyay, 2005).

As experiências nessa abordagem têm relação com a noção de “congruência cultural”, na qual as linguagens, experiências e formas de compreensão cultural dos estudantes são vistas como mediadores de atribuição de significados às práticas de letramento científico (Lee; Fradd, 1998, p. 12) e os “fundos de conhecimento” são estrategicamente usados como “pontes” de acesso aos conteúdos escolares. Por envolverem estudantes de grupos minoritários, de diferentes origens étnicas ou oriundos de famílias de baixa renda, as publicações sobre os “fundos de conhecimento” na educação em ciências deram continuidade à tradição dos trabalhos iniciados pelo grupo de Tucson, desenvolvendo metodologias de pesquisa e focos de interesse diversificados.

Upadhyay (2005), por exemplo, desenvolveu um estudo de caso para analisar os diferentes “fundos de conhecimento” dos estudantes em aulas de ciências do ensino fundamental e os seus significados para uma professora. Em estudo posterior (Upadhyay, 2009), realizou novo estudo de caso envolvendo estudantes e professores e estabeleceu reflexões sobre a formação docente para ensinar com os “fundos de conhecimento”. Basu e Barton (2007) analisaram as conexões entre os “fundos de conhecimento” e o desenvolvimento de interesse nas aulas. Bouillion e Gomez (2001) observaram o planejamento curricular e acompanharam aulas interdisciplinares no ensino fundamental envolvendo problemas ambientais com ampla participação da comunidade e Hammond (2001) investigou um trabalho de colaboração multicultural para a construção de livros e de um jardim.

De modo geral, os resultados desses estudos mostraram aumento de interesse, participação e engajamento dos estudantes nas aulas, bem como a aprendizagem de conteúdos e o desenvolvimento de habilidades científicas; os “fundos de conhecimento” se revelaram como mediadores relevantes das práticas de letramento; tipos distintos de fundos foram caracterizados, assim como suas conexões com a promoção e a sustentação do interesse nas aulas; alguns temas da ciência escolar foram identificados como sendo mais potentes para integração com os “fundos de conhecimento” e a participação da comunidade nas atividades escolares revelou possibilidades de ampliar a resolução de problemas reais.

Segundo os autores, a utilização dos “fundos de conhecimento” é estratégica para o engajamento e a aprendizagem em ciências, trazem empoderamento e ações transformativas (Basu; Barton,2009). As aulas baseadas na conexão entre os “fundos de conhecimento” e o conteúdo escolar são aquelas nas quais as experiências de aprendizagem são mais significativas (Upadhyay, 2005), aumentam o interesse por assuntos da ciência e levam à percepção de sua eficácia para a resolução de problemas (Boullion; Gomez, 2001), enquanto que a desconexão torna as aulas menos transformadoras e participativas, separando o mundo da ciência do mundo dos estudantes e gerando um sentimento de que a ciência é alienada, impraticável e oposta às crenças e práticas cotidianas, o que leva ao desinteresse e à falta de engajamento e participação nas aulas (Basu; Barton,2009).

A desconexão tem consequências afetivas e cognitivas e pode ocorrer de duas formas: quando a ciência não se relaciona ou adquire valor nas experiências dos estudantes e quando a escola não percebe como essas experiências podem ser usadas para fazer e aprender ciência (Boullion; Gomez, 2001). Hogg (2011) observou haver amplo acordo entre os autores no tocante ao apoio dado pelos “fundos de conhecimento” para a aquisição de novos saberes e intensificação dos processos de escolarização. Por outro lado, enfatizou que trabalhar nessa perspectiva demanda que os professores conheçam melhor os estudantes e percebam que é preciso ir além da simples identificação dos “saberes prévios”, sugerindo visões mais amplas e profundas sobre os saberes culturais dos estudantes e o desenvolvimento de formas de acessá-los para tornar a congruência cultural efetiva.

Em nossa visão, tal aprofundamento alinha-se ao construtivismo contextual (Cobern, 1991) por considerar as concepções dos estudantes como conjuntos complexos de referenciais e significados, cuja caracterização é fundamental para se compreender como a aprendizagem ocorre. Nesse contexto, é marcante a influência da teoria da aprendizagem significativa de David Ausubel, devido à sua ênfase na relação entre as estruturas conceituais pré-existentes nos alunos e os novos conhecimentos. O significado de uma concepção emerge, então, de conexões com os elementos da rede que constitui a ecologia conceitual do indivíduo.

Quando as concepções dos estudantes não correspondem às concepções científicas, elas são muitas vezes chamadas de “concepções alternativas” (ou equivocadas). Todavia, os estudos culturais mostram que os alunos têm outros referenciais para  avaliação  de  ideias e dão importância aos aspectos inter-conceituais, ou seja, às conexões epistemológicas que existem além de “assuntos internos” da ciência.

Por essa razão, os estudiosos dessa tradição acreditam que as   ideias   e   visões   dos   estudantes não podem ser medidas em relação às concepções científicas, mas dentro do contexto cultural que atribui significado a essas visões.  A principal pergunta a fazer no âmbito do construtivismo contextual, portanto, é semelhante à pergunta que os antropólogos culturais fazem: no que uma pessoa acredita sobre o mundo e por quê? A elucidação do “por quê” é fundamental porque se trata de uma questão associada à cultura.

Em relação às publicações sobre o “terceiro espaço” ou hibridismo como forma de letramento científico, uma primeira revisão de trabalhos foi feita por Moje, Ciechanowski, Kramer, Ellis, Carrillo e Collazo (2004), caracterizando seus aspectos teóricos, discursivos e educacionais, mas nem todas as publicações citadas nesta revisão se relacionam à educação em ciências. Dentre os 21 títulos, identificamos sete nessa direção e nem sempre os autores situaram seus estudos explicitamente no âmbito do hibridismo ou “terceiro espaço”. Isto foi feito por Moje et al. (2004) com base nas relações que perceberam.

Compreendido como a integração (e reconstrução) de saberes e discursos existentes no cotidiano dos estudantes (arbitrariamente chamados de primeiro espaço) com aqueles encontrados em instituições oficiais como a escola (segundo espaço), o “terceiro espaço” é onde saberes distintos trabalham juntos para criar novos saberes, discursos e formas de letramento ou um lócus no qual os estudantes acionam múltiplos recursos ou “fundos de conhecimento” para darem sentido ao mundo e, mais particularmente, aos textos orais e escritos (Moje et al., 2004).

Segundo Moje et al. (2004), há três abordagens do “terceiro espaço”: 1ª) aquelas que fazem associações entre saberes, 2ª) as que focalizam a navegação dos estudantes ou seus trânsitos por diferentes discursos e 3ª) as voltadas para a transformação dos saberes. A primeira tem influência de perspectivas cognitivas e sociocognitivas e considera o “terceiro espaço” como “ponte” que associa saberes frequentemente marginalizados pela escola aos saberes e discursos acadêmicos. Propõe partir dos saberes dos estudantes para conectá-los aos saberes escolares, entrando em cena os “fundos de conhecimento” e a necessidade de torná-los acessíveis aos professores para que construam as “pontes”.

A publicação de Gutiérrez, Baquedano-López, Alvarez e Chiu (1999) foi situada nessa primeira abordagem e também se relaciona ao letramento em Inglês de estudantes provenientes de famílias imigrantes nos EUA. Trata-se de um dos primeiros estudos que fazem referência ao “terceiro espaço”, no qual o hibridismo foi usado como recurso ou estratégia para promover confiança e engajamento dos estudantes:

“Para nós, práticas de letramento híbrido não envolvem simples mudanças de código, como a alternância entre dois códigos linguísticos. Elas compreendem mais um processo sistemático, estratégico, de afiliação e produção de sentidos entre aqueles que compartilham o código, na medida em que se esforçam para alcançar o entendimento mútuo” (Gutiérrez et al., 1999, p. 88, tradução nossa).

Na segunda abordagem descrita por Moje et al. (2004), o princípio é que o ensino pode instrumentalizar estudantes culturalmente diversos e distintos para navegar por diferentes discursos, dando acesso às convenções, linguagens, valores, normas, formas de expressão, leitura e escrita das diferentes comunidades, buscando compreender que tipos de textos são mais valorizados em cada cenário e quais habilidades são necessárias para produzir significados.

Um exemplo dado é a publicação de Moje, Collazo, Carrillo e Marx (2001) que, ao analisarem discursos competitivos em aulas de ciências, perceberam a dificuldade de uma professora de trabalhar com o “terceiro espaço”. Por essa razão, deram sugestões pedagógicas para realizar esse trabalho.

Na terceira abordagem, o “terceiro espaço” é um local de mudança cultural, social e epistemológica, onde diferentes discursos e saberes são trazidos para conversação, prevendo modificar tanto as práticas de letramento escolar/acadêmico como os saberes cotidianos. Os estudos nessa direção consideram que não é suficiente abrir espaço para que os saberes culturais dos estudantes sejam usados para a construção de “pontes” e assim motivá-los para a aprendizagem, mas configurar um espaço de criação de algo novo que tenha significados próprios (Moje et al., 2004; Carlone; Johnson, 2012).

Nessa abordagem, encontramos as publicações de Barton (2001), Hammond (2001), Lee e Fradd (1998), Moje et al. (2001) e Seiler (2001). Barton (2001), por exemplo, realizou uma etnografia crítica envolvendo duas estudantes de famílias de baixa renda em um ambiente urbano e revelou as relações de seus modos de ser com a educação em ciências e como se inserem em contextos específicos de sala de aula. O estudo de Seiler (2001) envolveu estudantes afrodescendentes na perspectiva da etnografia crítica em associação com a pedagogia crítica de Paulo Freire. Essa autora realizou encontros com estudantes na hora do almoço e fundou um clube de ciências.

Os trabalhos nesse clube começaram com os estudantes relatando suas vidas, gostos e interesses e onde veem a ciência nessas esferas. A pesquisadora então introduzia questões, propunha experimentos e discutia os significados a partir dos relatos dos estudantes.

O hibridismo é exemplificado em um experimento particular, no qual as interpretações dadas pelos estudantes foram verbalizadas por meio da mistura de palavras da ciência às suas próprias, mas a autora não se referiu a esses enunciados como híbridos, enfatizando mais o aparecimento espontâneo das palavras da ciência no discurso dos alunos e o envolvimento deles nas discussões.

Uma publicação posterior à revisão feita por Moje et al. (2004) é a de Barton e Tan (2009), na qual encontramos novamente o hibridismo associado aos “fundos de conhecimento”. Essas autoras situaram essa experiência na terceira abordagem e envolveram o planejamento colaborativo de aulas para incorporar as ideias, saberes e experiências culturais dos estudantes.

O objetivo da pesquisa foi compreender como os “fundos de conhecimento” fazem a mediação de práticas híbridas e como o professor facilita ou dificulta esse processo. O sucesso da experiência, segundo as autoras, foi associado ao compartilhamento da autoridade com os estudantes, à realização de experiências investigativas e, sobretudo, às ações e à facilidade do professor em envolver continuadamente os saberes culturais, familiares e comunitários dos estudantes nas discussões e nas atividades de leitura e escrita.

Para Barton e Tan (2009), o “terceiro espaço” relaciona a aprendizagem à negociação de múltiplos textos, discursos e saberes, e pode apresentar dimensões físicas, políticas e pedagógicas. A dimensão física foi associada ao desenvolvimento de conformações semelhantes aos espaços familiares na escola, como uma cozinha, por exemplo, e à incorporação nas aulas dos locais por onde os estudantes transitam fora da escola.

A dimensão política se referiu à distribuição do poder pelo professor, seja devido ao compartilhamento da autoridade e às relações mais horizontais estabelecidas com eles, à valorização de seus “fundos de conhecimento” e discursos e à inclusão daqueles que normalmente eram marginalizados nas aulas.

Do ponto de vista pedagógico, as mudanças destacaram o envolvimento dos estudantes no planejamento das aulas, no uso frequente dos “fundos de conhecimento” e na aplicação dos conteúdos em situações cotidianas. As autoras concluíram que essas dimensões foram benéficas para as aulas, para o professor e para o letramento científico dos estudantes.

Visões mais críticas do aspecto transformador do hibridismo na educação em ciências (Richardson Bruna, 2009; Gonsalvez; Seiler; Salter, 2011) postulam que o “terceiro espaço” ou hibridismo já existe nos modos de vida dos estudantes e colocam em questão a capacidade de os professores reconhecerem isto e incluírem, de fato, suas habilidades, disposições, saberes e práticas culturais para a constituição de novos saberes e consequente transformação das estruturas de poder e autoridade na educação em ciências.

Gutiérrez (2008) enfatizou o potencial transformativo do “terceiro espaço” com base na colaboração de diferentes sistemas de atividades para compor formas expandidas de aprendizagem que provocam a reorganização de saberes, indivíduos e dos ambientes onde vivem. Esta concepção, bastante influenciada pela educação libertadora de Paulo Freire, implica a percepção/conscientização dos estudantes sobre quem são, que transformações perceberam em si mesmos com as novas aprendizagens e como os novos saberes adquiridos podem contribuir para a transformação de suas realidades.

Algumas recomendações para o desenvolvimento de novos estudos sobre o hibridismo na educação em ciências são:

– explorar fatores que favoreçam a criação de espaços híbridos; identificar propostas e pedagogias que fomentem a criação de espaços híbridos de modo mais frequente (Barton; Tan, 2009);

– desenvolver estratégias de conexão entre temas globais e os espaços locais para discussão em salas de aula; construir atividades de letramento que promovam o engajamento social dos estudantes em suas comunidades e a formação docente para o trabalho com diferentes textos e discursos; promover experiências interdisciplinares; continuar o exame dos diferentes fundos que os estudantes utilizam para o engajamento com textos de diferentes conteúdos; prosseguir clareando como esses fundos fazem a mediação da leitura e escrita dos vários textos que os estudantes encontram na escola; desenvolver formas de medir os ganhos efetivos para a aprendizagem; atuar na modificação de políticas educacionais centradas na aprendizagem de conteúdos para a aprendizagem da navegação e da negociação dos múltiplos discursos orais e escritos existentes; examinar as relações da interação dos estudantes com textos de diferentes “fundos de conhecimento” e a formação de identidades híbridas (Moje et al., 2004).

Essa última recomendação revela uma tendência mais recente dos estudos sobre o hibridismo na educação em ciências, cabendo destacar as publicações de McKinley (2008) e Roth (2008) nesta direção, e um aspecto das publicações sobre o hibridismo como forma de letramento é o distanciamento da conceituação linguística de hibridização proposta por Mikhail Bakhtin, que também teve efeitos sobre o hibridismo cultural e histórico pós-colonial fundamentado por Bhabha (1998), mas que foi transformada por em um movimento ativo de desafio e resistência a um poder cultural dominante (Young, 1995). Em sua análise do discurso no romance, Bakhtin conceituou a hibridização como um tipo específico de encontro de vozes:

“É uma mistura de duas linguagens sociais dentro dos limites de um único enunciado, um encontro dentro da arena de um enunciado, entre duas consciências linguísticas diferentes separadas uma da outra por uma época, por diferenciação social ou por algum outro fator” (Bakhtin, 1981, p. 358).

Associado a esse conceito está o que Bakhtin (1981) chamou de heteroglossia, ao se referir ao ambiente autêntico onde nossos enunciados vivem e se desenvolvem. Desde que nascemos, estamos rodeados por uma multiplicidade de vozes sociais, onde cada voz é uma unidade fundamental de composição que é sempre mais ou menos dialogizada com outra.

No caso, a hibridização intencional ou deliberada é aquela estabelecida nos romances, mas Bakhtin (1981) também citou outra forma: a “hibridização orgânica”, que difere por ser involuntária, inconsciente e presente na vida e na evolução histórica de todas as linguagens. Segundo ele, todas as linguagens mudam historicamente por meio deste tipo de hibridização, da mistura de várias linguagens.

Um aspecto particular das linguagens sociais é que elas estão repletas do que Bakhtin chamou de gêneros de discurso. Enquanto as linguagens sociais pertencem a grupos particulares de indivíduos falantes, os gêneros do discurso compreendem características de comunicação ou tipos de enunciação expressos em situações que envolvem temas e contatos específicos entre as palavras e a realidade concreta (Wertsch; Smolka, 1994).

Bakhtin propôs uma classificação dos gêneros do discurso, chamando-os de primários e secundários. Os gêneros primários são os mais simples, tais como os gêneros da vida cotidiana ou uma conversa familiar, por exemplo, que “constituem e se desenvolvem em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea e estão em relação direta com seu contexto mais imediato” (Faraco, 2009, p. 132).

Por outro lado, os gêneros secundários são mais elaborados, como, por exemplo, as atividades científicas. Esses últimos “surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado” (Bakhtin, 2011, p. 263), mas não existem independentes dos gêneros primários e podem incorporar aqueles que se formaram na comunicação mais imediata e reelaborá-los.

O fato de os gêneros secundários serem mais complexos não impede “que uma forma do mundo cotidiano possa entrar para a esfera da ciência, da arte, da filosofia, por exemplo. Em contatos como esses, ambas as esferas se modificam e se complementam” (Machado, 2005, p. 155). O próprio Bakhtin não via esses dois tipos de gêneros como realidades independentes e sim interdependentes.

Com base nesta conceituação de hibridização, nossa contribuição para os estudos sobre o hibridismo na educação em ciências reside na elaboração de narrativas híbridas de saberes e discursos da comunidade e da ciência para a formação docente e a realização de experiências em salas de aula. Nesse sentido, nossas pesquisas buscam conhecer inicialmente os “fundos de conhecimento” existentes na comunidade, por meio de estudos etnográficos de saberes e práticas que tenham relações com os conteúdos da ciência escolar.

Em seguida, procuramos explicar esses saberes por meio do conhecimento científico e elaboramos as narrativas híbridas seguindo a conceituação Bakhtiniana, as quais são disponibilizadas posteriormente no sítio Ciência na Comunidade e utilizadas em investigações com professores e estudantes da educação básicas. Os resultados das interações com essas narrativas vêm revelando certo “encantamento” com a associação entre as linguagens da comunidade e da ciência, dentre outros aspectos, os quais estamos trabalhando para divulgar oportunamente.

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