É muito difícil precisar com certeza como os saberes sobre o sabão de cinzas e o vinho de laranja se constituíram ou foram estabelecidos. Não há registros escritos e tudo o que sabemos é que constituem heranças de gerações passadas. Por certo que resultaram de interação humana com os fenômenos naturais envolvidos, tendo em vista aproveitar suas potencialidades para viver melhor. Assim, o sabão de cinzas permitiu melhores condições de higiene e saúde às populações que viveram em Minas Gerais antigamente e o preparo do vinho de laranja tornou-se um modo de reunir uma família para produzir uma bebida com papel gastronômico importante em suas comemorações e datas festivas. Provavelmente esses saberes tiveram origem na observação simples dos fenômenos e na “experimentação natural”, seguindo-se algumas intervenções para controlá-los e dominá-los para usufruto.
Cada tipo de saber local tem o seu próprio contexto social, natural e cultural de origem e desenvolvimento. Antweiler (1998, p. 472) mencionou que não se tratam de saberes amplamente distribuídos dentro de um mesmo local ou comunidade, ou que seja do conhecimento de todos, apresentando-se mais como um sistema fragmentado de saberes muitas vezes associados a grupos de gênero específico ou no interior de relações de parentesco. De fato, o sabão de cinzas é produzido por apenas algumas pessoas das comunidades locais, a maioria mulheres, e o vinho de laranja é feito por uma mesma família. Outro aspecto é que podem ocorrer relações de animosidade entre pessoas e grupos que detém um mesmo saber. Algumas produtoras do sabão de cinzas demonstraram desconfiança em relação ao sabão de outras, por exemplo. Outro aspecto é o da fragmentação dos saberes entre os mais velhos e os jovens, como o caso relatado por Dona Rosa quando “os menino” lhe pediram um sabão e ela negou dizendo que eles não sabiam nem aprender a fazer.
Um tipo de saber local é o que está relacionando com procedimentos específicos. Os saberes sobre o sabão de cinzas e o vinho de laranja enquadram-se nesse tipo porque seguem esquemas/scripts previamente determinados na forma de uma sequência precisa de passos. Em sua dimensão social e prática, esses saberes envolvem também capacidades e habilidades específicas, tais como descascar as laranjas até que fiquem “bem machucadas”, preparar rolhas feitas de bambu e adaptar mangueirinhas para saída de gás dos garrafões, saber forrar o balaio com folhas de bananeira para produzir a dicuada, compactar as cinzas em seu interior usando as mãos ou um soquete e realizar testes para o controle das proporções relativas entre dicuada e gordura. Essas habilidades ou capacidades são semelhantes a saber usar uma pera de borracha e uma pipeta para succionar e medir volumes determinados de líquidos, ou saber manipular uma bureta e um erlenmeywer para realizar uma titulação, realizar medidas usando um paquímetro ou preparar uma lâmina para observar as células de um tecido ao microscópio. Outro aspecto em comum é a existência de “receitas”: a definição dos procedimentos para realização das experiências.
Em relação às formas de ensino e aprendizagem, os saberes locais são normalmente ensinados e aprendidos através da ação, ou seja, aprende-se ou ensina-se fazendo. A verbalização pode acompanhar este processo, mas a ação predomina. Isto é diferente do ensino e da aprendizagem em ciências na escola, onde as ações verbais e escritas predominam. Outras características dos saberes culturais locais são: os materiais são normalmente usados em sua forma bruta e as fontes de energia são aquelas disponíveis localmente; tendem a envolver um trabalho intensivo, independente e de baixo custo; são orientados para necessidades da vida real (alimentação, higiene, limpeza e vestuário, por exemplo); a empiria é baseada na observação, em processos de tentativa e erro e em “experimentos naturais”; exibem o que se denomina por “saturação experiencial”, na qual os resultados experimentais são confirmados ao longo do tempo (Antweiler, 1998, p. 477).
No caso das formas de ensino e aprendizagem no campo da ciência, elas iniciam na escola e depois prosseguem no ensino superior e pós-graduação. De modo geral, inicialmente a escola propicia uma formação voltada para a aquisição de conhecimentos e depois é que se aprende como fazer pesquisa nas universidades. Normalmente não se aprende ou se ensina a fazer pesquisa científica na escola, nem se ensina ou aprende fazendo, mas, ouvindo, lendo e escrevendo. Na formação para a pesquisa a ação está mais presente, mas não se desenvolve sem a escrita e a leitura. Assim, os saberes não só se desenvolvem em locais distintos, mas têm percursos e formas de ensino e aprendizagem distintos também. Nas comunidades locais as pessoas normalmente se conhecem desde cedo, estão mais familiarizadas umas com as outras, enquanto que na escola e na universidade nem sempre existe esta proximidade.
Na atividade envolvendo fotografias de materiais comuns à comunidade e aos laboratórios científicos, o propósito foi chamar atenção para os materiais comumente usados e seus diferentes níveis de sofisticação. As imagens mostram que os recursos utilizados na comunidade tendem a ser mais rústicos e grosseiros em comparação com aqueles usados nos laboratórios. Conforme dito em outra parte, isso se dá porque as atividades desenvolvidas nesses ambientes têm propósitos, percursos e histórias diferentes. Qualquer comparação deve levar em conta seus contextos de origem, desenvolvimento e finalidade. Deste modo, nos laboratórios científicos fazem uso de água purificada (destilada ou deionizada) enquanto na comunidade a água é do tipo filtrada ou tratada e muitas vezes natural. Nos laboratórios os materiais, reagentes, produtos químicos ou substâncias são mais puros, enquanto na comunidade geralmente encontram-se em sua forma bruta. As fontes de calor também diferem: os bicos de Bunsen e as mantas aquecedoras são mais sofisticados e permitem maior controle da temperatura, enquanto nos fogões a lenha, a gás ou improvisados isto é mais difícil de ser realizado. As panelas de ferro, alumínio ou cobre da comunidade são substituídas por vidraria específica resistente ao calor nos laboratórios: copos de béquer, erlenmeyers, balões de fundo redondo, etc.
Os procedimentos laboratoriais normalmente envolvem pequenas quantidades de substâncias, enquanto na comunidade as quantidades são relativamente maiores. No preparo da dicuada usam um balaio forrado com folhas de bananeira ou saco de pano para extrair o carbonato de potássio das cinzas, enquanto que extratores do tipo Soxlet foram desenvolvidos com a finalidade específica de extrair substâncias por meio da circulação contínua de pequena quantidade de solvente pelos materiais. Não se usam folhas de bananeira nos laboratórios para reter substâncias insolúveis, mas papéis de filtro. Na pesquisa científica a calibração dos instrumentos e as medidas são fundamentais para a execução dos experimentos, onde usam balanças de precisão, vidraria graduada e termômetros para medir massas, volumes e temperaturas, enquanto o controle das quantidades dos materiais, embora importante, não é feito tão rigorosamente pelas produtoras do sabão e do vinho de laranja. Entretanto, apesar das diferenças de nível de sofisticação dos materiais e procedimentos, há também semelhanças entre as atividades realizadas: extraem substâncias, separam resíduos, dissolvem materiais, recolhem gases, realizam testes de qualidade, observam e controlam fenômenos naturais e há criatividade nas duas formas.
Tratando do tipo de controle existente na experimentação científica, Cobern & Loving (2001) observaram que o conhecimento tradicional não tem as mesmas características. Isso não significa que não haja controle, mas que não é do mesmo tipo. As práticas tradicionais não têm a intenção de desenvolver experimentos tendo em vista explicar os fenômenos envolvidos ou testar uma ideia teórica ou outro experimento. Sua empiria tem outras finalidades. A experimentação científica envolve uma experimentação mais controlada porque precisa estabelecer condições precisas para coleta dos dados; eles precisam ser determinados em condições bem conhecidas. Se uma condição for indeterminada, não se poderá dizer exatamente como o dado foi obtido e as conclusões serão incompletas.
Uma premissa importante da pesquisa científica é construir explicações para os dados. Isto envolve a coleta precisa dos mesmos (as evidências), a proposição de explicações para explicá-los e a testagem das explicações propostas. No trabalho científico, outra exigência é que ele seja feito de modo objetivo ou sem a interferência de crenças prévias; os dados devem ser coletados de forma justa e precisa e usando métodos confiáveis. Segundo Lederman & Lederman (2012) a investigação científica não se restringe ao uso e desenvolvimento de habilidades de observação, inferência, classificação, predição, medidas, questionamento, coleta, interpretação e análise de dados, porque essas habilidades são, na verdade, combinadas com conhecimento, raciocínio e pensamento crítico científicos.
Os cientistas fazem pesquisas de modo sistemático, metodicamente, mas fazem isso usando o conhecimento gerado por outras pesquisas, empregam o raciocínio lógico e questionam, colocam em dúvida seus próprios resultados. Uma visão distorcida é a que considera a existência de um único método científico, conforme muitos livros didáticos e a mídia em geral. De acordo com esses pesquisadores, o modelo de método científico apresentado nos livros é coerente com o trabalho de pesquisa experimental realizado nas ciências naturais e o problema não está nessa relação, mas no fato de que a pesquisa experimental não é representativa das investigações científicas como um todo (Id., p. 338). Isto significa que existem outros métodos e tipos de pesquisa científica.
Para o filósofo da ciência Jean Ladrière, as ciências empíricas envolvem dois componentes essenciais: razão e experimentação ou experiência. Na ciência, a palavra “experiência” não significa um mero contato com o mundo real (percepção como forma de contato, por exemplo), mas uma intervenção no curso dos eventos. Um experimento científico é um procedimento que consiste em produzir um efeito detectável e analisável em circunstâncias que foram preparadas de acordo com um planejamento preciso e levando em conta as hipóteses de seus possíveis efeitos. A ideia de experimento é frequentemente associada com a de perturbação introduzida de modo controlado em um sistema, o que contrasta com a simples observação de um fato ou experimentação natural. Observar um sistema cientificamente não significa registrar passivamente o que ocorre no mesmo, mas estabelecer um arranjo através do qual seja possível reunir informações de um certo tipo, intencionalmente escolhidas. Para observar o espectro de luz de uma estrela, por exemplo, o pesquisador faz interagir uma fração da luz da estrela com um aparelho óptico de propriedades conhecidas e elaborado de tal modo que os resultados da interação provocada possam ser interpretados sem ambiguidade (Ladrière, 1977, p. 24).
O que é importante em um experimento científico segundo Ladrière não é o seu registro, mas tudo que acontece antes e o que vem depois. Antes de produzir qualquer resultado o pesquisador desenvolve o que é chamado de planejamento ou preparação. Isto envolve relacionar o desenvolvimento do experimento com outros já realizados, prever os resultados, formas de controle, registro e seleção dos instrumentos. Ele fala em duas formas de operação: material e intelectual. A primeira se refere aos recursos a serem usados e a segunda às operações relacionadas à apuração dos dados (eliminação de erros, ajuste das curvas aos resultados, tratamento estatístico, discussão teórica do experimento e outros). Devido ao planejamento preliminar meticuloso e à condução mais cuidadosa, é difícil conceber a experimentação científica como sendo “natural” ou baseada em processos de “tentativa e erro”.
Após o registro dos dados, eles são sintetizados, é feita uma análise do experimento para eliminar erros de observação e então os resultados são traduzidos em curvas, séries estatísticas, tabelas de correlação, etc., de modo a produzir afirmações que possam ser usadas nos termos das ideias teóricas disponíveis para entender o fenômeno em questão. Essas ideias compõem as hipóteses da pesquisa ou os resultados mais prováveis que a teoria permite prever, que são comparados com os resultados do experimento. A atividade científica consiste em um cruzamento contínuo da teoria com o experimento. As teorias conduzem às hipóteses, que sugerem a realização de experimentos, que por si, confirmam ou negam as hipóteses. Quando confirmadas, continuam a ser usadas para propor novos experimentos. Quando não, são modificadas em maior ou menor grau. Isto envolve um contínuo diálogo com a teoria, sugerindo novas ideias e a formulação de novas hipóteses. Mas, em geral, o confronto entre teoria e experimento não envolve somente uma teoria, mas ideias teóricas variadas no tratamento dos resultados.
Este método de fazer a pesquisa científica é chamado de hipotético-dedutivo (Cobern & Loving, 2001). Nele o pesquisador procura inicialmente obter conhecimentos sobre um campo de investigação definido, compara as pesquisas em seu interior com as de outros campos, até tornar-se mais ou menos familiarizado com o “estado da arte” do conhecimento existente. Isto normalmente se concretiza com o que denominamos “revisão bibliográfica” ou “análise crítica da literatura” e envolve várias fontes: artigos publicados em periódicos especializados, livros, trabalhos publicados em congressos, etc. Esta revisão, se feita com criticidade, levantará dúvidas, perguntas ou problemas, os quais mostrarão possíveis caminhos pelos quais o pesquisador poderá trilhar para ampliar os conhecimentos existentes. Muitas vezes um dado conhecimento é válido para um número limitado de situações e a verificação em outras também é uma possibilidade de ampliação de conhecimentos.
De todo modo, seja qual for o problema ou questão de pesquisa formulado/definido com a revisão do campo de investigação, o pesquisador prevê as respostas ou resultados através das hipóteses, as quais representam as regularidades previstas de acordo com o conhecimento que se tem. Jean Ladrière (1977, p. 25) menciona que, na medida do possível, as hipóteses são formuladas através de representações matemáticas que permitem definir as variáveis que serão controladas. A solução desta equação permite determinar a função procurada e por meio dela atribuir uma interpretação física. As formulações matemáticas na forma de hipóteses apresentam vantagens indubitáveis, segundo ele, porque a matemática permite uma variedade ampla de estruturas abstratas cujas propriedades podem ser comparadas e conhecidas, permitindo derivar uma ampla faixa de interpretações. Elas permitem prever o comportamento dos fenômenos em diferentes situações e tempos e nesta base torna mais fácil interpretá-los fisicamente.
A experimentação realizada nas aulas de ciências tende a assemelhar-se àquela realizada nos laboratórios científicos, porém, nesses últimos, o nível de sofisticação, planejamento e mobilização de recursos, saberes e ideias é bem mais expressivo. Cientistas lidam com experimentos cujos resultados são conhecidos, mas também lidam com experimentos inéditos cujos resultados não conhecem, enquanto que os experimentos escolares normalmente tendem a lidar com o que é conhecido para exemplificar, comprovar, ilustrar ou servir de contexto e motivação para aprofundamento teórico.
A experimentação envolvida na produção do sabão de cinzas e do vinho de laranja está mais distante daquela normalmente realizada nas escolas e nos laboratórios científicos, mas também representa uma herança cultural. Todavia, sua finalidade é produzir bens materiais para usufruto, não se prestam à construção de explicações, à aprendizagem, à confirmação/negação de hipóteses ou ao avanço dos conhecimentos dentro de um campo de investigação. Nesses saberes, o conhecimento emerge mais espontaneamente e amadurece ao longo do tempo, embora muitos avanços na ciência também podem levar tempo, como, por exemplo, a elucidação das etapas da glicólise que envolveu mais do que 30 anos de estudos.
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Referências
ANTWEILER, C. Local knowledge and local knowing: an anthropological analysis of contested “cultural products” in the context of development. Anthropos, 93, p. 469-494, 1998.
Cobern, W.W.; Loving, C.C. Defining “Science” in a multicultural world: implications for science education. Science Education, v. 85, p. 50-67, 2001.
Ladrière, J. (1977). The challenge presented to cultures by science and technology. Paris: UNESCO.
Lederman, N.G.; Lederman, J.S. Nature of scientific knowledge and scientific inquiry: building instructional capacity through professional development. In: Fraser, B. J.; Tobin, K. G.; McRobbie, C. J. (Eds.) Second International Handbook of Science Education. New York: Springer Dordrecht Heidelberg, 2012. p. 335-359.