Um aspecto importante relativo à inserção de culturas locais em salas de aula é a correspondência fatual à realidade. Baseando-se em seus estudos em Trindade e Tobago, June George mencionou que isto requer atenção, dedicação e responsabilidade e que não há expectativa de que os professores de ciências façam isso por si mesmos em seu país (George, 1992, p. 107). Entretanto, mesmo que feita com rigor, a representação de uma dada cultura é sempre problemática e requer discussão. McKinley & Stewart (2012), por exemplo, mencionaram haver distorções no tratamento da cultura indígena por professores de ciências na Nova Zelândia, a qual assume a forma de caricaturas ao ser abordada superficialmente e de modo desvinculado de seus contextos e relações históricas, sociais e políticas. O que vem a ser uma “representação” e o que podemos fazer para resolver este problema?
Quando nos referimos à identidade de um sujeito, precisamos ter em mente que é muito difícil haver uma percepção completa ou inteira, porque nosso olhar é limitado e não consegue percebê-lo totalmente; sempre irá faltar algo ou alguma parte que permanecerá invisível. Assim, é mais apropriado falarmos na criação de uma “imagem do sujeito ou de sua identidade”. Contudo, esta imagem já não é mais o sujeito ou a sua identidade, mas uma representação. Isto implica na existência de um certo tipo de transformação do sujeito nesse processo.
“(…) O sujeito não pode ser apreendido sem a ausência ou invisibilidade que o constitui – ‘e mesmo que agora você olhe para mim/nunca me verá’ – assim o sujeito fala, e é visto, de onde ele não é” (Bhabha, 1994, p. 47).
Na melhor das hipóteses, é como se estivéssemos vendo o reflexo no espelho de alguém por trás de uma janela de vidro canelado – uma mimese da realidade no dizer de Homi Bhabha (1994, p. 48), ou a sua imitação, cópia, reprodução ou representação. O conceito de mímesis é antigo e remonta ao tempo dos filósofos gregos e suas discussões sobre a reprodução de objetos pré-existentes pelas obras de arte (a imitação da realidade). Falando de outro modo, a imagem é uma re-apresentação feita por alguém e por isso ela é limitada, incompleta e marcadamente influenciada pelo ponto de vista do autor.
Uma forma de resolvermos esse problema é assumirmos que o acesso ao sujeito e à sua identidade (ou saberes) só é possível se negarmos qualquer senso de originalidade ou plenitude e reconhecermos que seu deslocamento sempre produzirá uma ilusão ou fragmentação contendo ausências e perdas (Bhabha, 1994, p. 51). Este aspecto deve ser levado em conta na análise dos saberes descritos nas narrativas híbridas do sítio Ciência na Comunidade. Por mais que os trabalhos de campo e a escrita sobre esses saberes tenham sido rigorosos e criteriosos, permanecem incompletos por não apanharem essas realidades totalmente. Além disso, esses saberes não abarcam a totalidade de manifestações das culturas locais existentes.
O mesmo podemos dizer para o conhecimento científico retratado nas narrativas híbridas. Se analisarmos a linguagem da ciência, por exemplo, veremos que ela é bem mais rica e diversificada, incluindo elementos gráficos, representações esquemáticas, imagens e outras formas de comunicação que não estão presentes nas narrativas. Talvez a forma mais adequada de analisarmos a linguagem da ciência seja mediante a leitura de artigos científicos. Além da questão da linguagem, uma visão mais ampla e profunda sobre a natureza da ciência requer a análise de contextos culturais autênticos de investigação científica e no caso das narrativas híbridas o contexto não foi esse.
Ao lidar com qualquer tipo de conhecimento, o professor deve estar ciente e conscientizar os alunos sobre as limitações do processo de transferência para a sala de aula: isso sempre implicará em transformações com perdas e ausências. Por outro lado, mesmo sabendo que não conseguirá inseri-lo em sua plenitude nas aulas, não pode deixar de atentar para o problema de distorcê-lo ou expressá-lo na forma de caricatura e nem de perceber a existência de suas conexões com outros aspectos relevantes; não se trata de verificar somente o saber em si de modo estanque ou isolado, mas em considerar também as relações ou contextos históricos, sociais, culturais, econômicos e políticos, entre outros, que lhe deram origem e influenciaram o seu desenvolvimento. A ciência ensinada na escola pode, do mesmo modo, promover uma caricatura ou representação distorcida da ciência, já que muito se perde e deixa de ser considerado no deslocamento do conhecimento científico para os currículos escolares. Discutir isto com os alunos é uma forma de conscientizá-los sobre o problema e um estímulo ao desenvolvimento de visões mais apuradas sobre esses saberes em sala de aula.
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Referências
BHABHA, H. The Location of Culture. New York: Routledge, 1994.
GEORGE, J. Science Teachers as Innovators using Indigenous Resources. International Journal of Science Education, v. 14, n. 1, p. 95-109, 1992.
MCKINLEY, E.; STEWART, G. Out of place: indigenous knowledge in the science curriculum. In: Fraser, B. J.; Tobin, K. G.; McRobbie, C. J. (Eds.) Second International Handbook of Science Education. New York: Springer Dordrecht Heidelberg, 2012. p. 541-554.