Progressiva e relaxamento: Qual a função?

   Expliquei para o Welder que uma vez fiz uma “progressiva definitiva” nos cabelos e tive que cortar, pois ficou muito danificado. Ele me perguntou: “com amônia?”. Respondi: “é, acho que tiaglicolato de amônia, né? Aí meu cabelo ficou horrível e tive que cortar”. Houve um momento de silêncio e depois ele completou: “mas Marcella você é louca, você não tem cabelo pra fazer tiaglicolato não. Eu não sei como seu cabelo não desmanchou antes de você cortar. Eu nunca vi fazer tiaglicolato em cabelo liso. Tiaglicolato é pra cabelo afro”. Carlos Alberto explicou que a escova progressiva é diferente de relaxamento: “Tem gente que acha que é a mesma coisa, mas não são. A diferença é que o relaxamento você trabalha quebrando as moléculas de enxofre que tem na formação do cabelo e trabalha bem no interior do fio do cabelo, no córtex dele”. O relaxamento ou alisamento dos cabelos é o processo reativo utilizado para alisar os cabelos cacheados excessivamente. Os produtos alisadores atuam quebrando as pontes dissulfeto (ligações formadas entre os átomos de enxofre) entre os aminoácidos das fibras capilares. Desta forma, para moldar a estrutura do cabelo faz-se o alisamento com auxílio de uma chapinha, com posterior aplicação de um neutralizante (ROBBINS, 2002, p. 144).

   Enquanto observei o processo de luzes realizado pela Joana, ela afirmou: “legal entender a química, né? Igual a do relaxamento, porque ele de química é mais interessante ainda o que ele faz com o cabelo. Ele muda a estrutura do fio. É muito interessante. Já a progressiva não muda não”. Com sua experiência no ramo, o Carlos Alberto explicou: “O relaxamento é mais agressivo. Existe dentro do relaxamento… Normalmente você tem de três a quatro forças de intensidade que você vai usar de acordo com a espessura do fio, né?”. A faixa de pH dos alisadores varia entre 12,5 a 13,3 e o dano causado por estes produtos ao cabelo está, em grande parte, relacionado com isso. Um produto de pH mais baixo, como por exemplo o sulfito de sódio ou bissulfito de amônio (pH 7,6) não alisa o cabelo tão eficazmente como os alisadores alcalinos. Nesses casos, o produto deve ser deixado no cabelo por um longo período de tempo (aproximadamente 50 minutos) para que realmente ocorra o alisamento. Os grupos alcalinos reagem com grupos de cistina produzindo resíduos de lantionina (ROBBINS, 2002, p. 145), como mostra a figura  seguinte.

Quebra e reorganização das ligações do cabelo durante o relaxamento

Quebra e reorganização das ligações do cabelo durante o relaxamento

   Carlos Alberto alertou: “As condições que ele tá com relação aos processos químicos que já foram usados antes e os relaxamentos, eles são incompatíveis um com o outro. Você tem que saber o que a pessoa usou, para você saber o que vai estar colocando para não cruzar química porque se cruzar quebra. Se a pessoa não sabe te informar, aí você vai fazer teste de mecha. Você pega umas mechinhas debaixo do cabelo, na nuca, e você usa os produtos que você tem, né? Uma mecha fininha e faz o procedimento como você estivesse fazendo um relaxamento. Aí você vai testar a elasticidade do cabelo, né? A resistência dele, a porosidade, para poder ver qual o produto você pode estar usando. Nesse teste você vai deduzir o que foi usado e também os produtos presentes no relaxamento. Quando você vai fazer um relaxamento você tem que saber o histórico”.

   A maioria das substâncias usadas nos procedimentos não podem entrar em contato, ou seja, serem aplicadas no cabelo que passou por um alisamento. Novas substâncias deverão ser usadas somente no cabelo que não passou por nenhum procedimento de alisamento, pois pode ocorrer incompatibilidade dos produtos químicos causando a quebra ou dano intenso aos fios. Carlos Alberto disse ainda: “Eu trabalho só com dois, que é a guanidina e o tioglicolato de amônia. São os dois princípios mais usados, porque eles te dão a flexibilidade para você estar fazendo outras químicas se a pessoa quiser”. Os produtos alisadores (relaxantes) são à base de hidróxido de sódio, hidróxido de potássio, hidróxido de lítio, hidróxido de guanidina, bissulfitos, tioglicotalo de amônia ou etanolamina. Posteriormente, aplica-se uma substância neutralizante para diminuir o pH, interrompendo o processo e formando novas pontes dissulfeto dando um novo formato ao fio de cabelo, o qual é modelado pelo uso da chapinha.

   O hidróxido de guanidina é uma mistura de carbonato de guanidina (líquido ativador) e hidróxido de cálcio (massa). É preciso ter conhecimento sobre a guanidina, pois quando em contato com o cálcio em maior quantidade, o cabelo pode ressecar e quebrar. Já o tioglicolato de amônio ou de etanolamina pertencente à família dos “tióis”, são bem menos potentes do que o hidróxido de sódio e, em geral, mais suaves do que a guanidina, pois possuem pH variando de 8,0 a 9,1. Sua concentração depende do pH da solução de amônia.

    Carlos Alberto então completou: “Vamos supor, você faz um. Hoje o que te incomoda é um cabelo ondulado aí você relaxa ele. Amanhã você quer ficar loira e tem produtos de relaxamento que é incompatível com a descoloração e já esses dois, dependendo da maneira como você trata o cabelo, você pode estar fazendo umas mechinhas que ele aguenta”. Os relaxantes à base de tiol (Tabela 6) geralmente contêm substâncias que ajudam a reconstituir as pontes dissulfeto dos cabelos (ROBBINS, 2002, p. 143-145).

Tabela6-Componentes-dos-produtos-relaxantes-a-base-de-tiol

  Nesta pesquisa, percebemos que os saberes envolvidos nos tratamentos capilares apresentam relações com conteúdos de ciências, química e biologia, como, por exemplo, as substâncias e funções orgânicas envolvidas, reações de oxirredução, formação e composição dos cabelos e outros. Os cabeleireiros têm saberes experienciais, mas também fazem cursos que lhes permitem compreender os fenômenos, produtos químicos e adquirir conhecimento científico para exercer a profissão.

Carlos Alberto: É, fiz vários cursos. O primeiro curso meu foi um curso para trabalhar só com feminino, depois fiz um corte de química para trabalhar só com a parte química: calorimetria, tintura, relaxamento, coloração, descoloração. E depois você vai acumulando com o tempo, um cursinho aqui, de fim de semana, outro ali, curso de 12 horas, de 20 horas e você vai acumulando conhecimento.

  Nesta pesquisa, observamos que os saberes desse cabeleireiro, em particular, demonstraram coerência com os saberes científicos. No entanto, no caso do Welder surgiram dúvidas, como foi o caso do efeito da menstruação em candidatas ao procedimento de “luzes”. Acreditamos que mesmo essa questão pode ser trazida para a sala de aula para provocar debates e realizar novas investigações na comunidade, envolvendo outros cabeleireiros, a literatura e mesmo os laboratórios de ciências das escolas.

   Outro aspecto seria discutirmos em sala de aula se as pessoas precisam ou não ser informadas a respeito dos tratamentos capilares. Na maioria das vezes, as pessoas conversam sobre vários assuntos quando vão aos salões de beleza, mas raramente conversam sobre ciência. Por que não dialogamos também sobre a formação e composição dos cabelos e dos produtos capilares, como esses últimos agem, que benefícios e danos provocam e como fazer para usá-los adequadamente. Há muito tempo os produtos químicos vêm sendo comercializados e utilizados nos tratamentos capilares e é pouco comum que as pessoas se interessem em compreender melhor de que e como são feitos, suas propriedades e ações. Quantas mulheres (e homens) vão aos salões para fazer “luzes” e saem de lá sem saber o que ocorreu? Nesse contexto, cabe perguntar: é importante ter conhecimento científico a respeito? Vimos também que existem situações em que é preciso realizar testes nos cabelos para não “cruzar” substâncias químicas usadas em tratamentos distintos, sob o risco de ocasionar danos aos cabelos. Ao realizar esses testes, podemos dizer que os cabeleireiros expressam atitudes científicas?

Carlos Alberto: Normalmente a gente faz um teste primeiro para uma questão de segurança, até porque hoje os processos né, se você quebra um cabelo aí, a pessoa te leva na justiça e você tem que indenizar, então quando uma pessoa vê que você trabalha com critério né, e que pode acontecer também, aí a pessoa sabe que você entrou com todo o aparato para que aquilo pudesse dar certo, a pessoa sabe que você trabalhou com segurança. Então assim, normalmente quando você trabalha com relaxamento a gente faz um teste de mecha e um teste alérgico, a gente pega um pouco o produto, igual eu te falei, faz um teste no cabelo e passa o produto atrás das orelhas, que é uma área sensível, aí a pessoa de 6, 12 horas ela vai te dando passo a passo do que aconteceu, se irritou, coçou.

Pesquisadora: Então esses produtos que tem para fazer o relaxamento, tipo a guanidina, podem dar alergia na pessoa?

Entrevistado: Isso, a tintura, todos eles podem dar alergia.

   Voltando ao Welder, veja o que ele pensa sobre química, no entanto:

Welder: “Química não é fácil né?!”.

Marcella: “Não é não”.

Welder: “É cada coisa que acontece que a gente nem espera”.

   Mesmo assim, ele sugeriu à pesquisadora que se dedicasse à profissão de “cosmetóloga”, a pessoa que elabora os produtos usados no salão:

Welder: “Você tem que ser cosmetóloga Marcella. Ganha um dinheirão”.

Marcella: “Mas o que quê faz?”

Welder: “Produtos, inventar os produtos. De cosméticos. Por exemplo, a Ecosmetics tem uma cosmetóloga, quer dizer, uma das, que é a mesma cosmetóloga da Avon, que desenvolve os Renews, ganha um dinheiro bonito”.

Marcella: “Também deve ser mega inteligente”.

Welder: “Pois é. E aposto que ela desenvolve mas não usa”…

   Vemos, assim, que a química, a ciência e a tecnologia estão presentes nos tratamentos capilares realizados na comunidade. Embora tenham também seus limites de utilização, oportunizam situações de trabalho, de cuidado estético, geram economia e contribuem, de modo indireto, para as mais diversas interações sociais que ocorrem nos salões de beleza.

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Referência

Robbins, C. R. Chemical and physical behavior of human hair. 4. ed. New York: Springer-Verlag, 2002. 483 p.