Algumas informações sobre as visões de mundo de três estudantes de ensino médio serão apresentadas em um texto seguinte. Vamos usá-las para ajudar na construção de significados para ‘visões de mundo’. Neste texto, vamos descrever inicialmente o contexto da pesquisa e a metodologia utilizada. As informações serão apresentadas no texto 4. Ao final, algumas questões serão propostas para que você expresse a sua opinião.
O contexto da pesquisa
A investigação das visões de mundo de estudantes de ensino médio ocorreu no âmbito do desenvolvimento de uma pesquisa que envolveu a interação de uma sala de aula com os saberes e práticas relativos ao preparo do sabão de cinzas por mulheres de Minas Gerais. Esta interação foi mediada por um CD-ROM: o hipermídia etnográfico sobre o sabão de cinzas.
Neste instrumento, os saberes e práticas relativos à esse sabão foram descritos por meio de uma narrativa combinando textos, diálogos e vozes transcritas, vídeos e fotografias, os quais foram organizados em doze páginas eletrônicas para exploração usando o computador.
O título de cada uma destas páginas resume o conteúdo de cada uma delas e em alguns casos expressa as vozes das próprias informantes: 1) Hoje em dia o pessoal não conhece, 2) Os ingredientes, 3) É de cinza porque ele é feito da dicuada, 4) A dicuada quanto mais forte mais rápido faiz o sabão, 5) E essa dicuada se deixá secá vira um sal, 6) A mistura que produz sabão, 7) O “ponto” do sabão, 8) A polêmica do uso da soda, 9) Depois de atingido o “ponto”, 10) Um sabão eficiente e bom pra pele, 11) Influência da lua e de um “olho gordo” e 12) O sabão de cinzas sobreviverá?
Na mesma mídia também foram propostas 14 questões/atividades, como, por exemplo: Por que usam as cinzas? Por que “a dicuada quanto mais forte mais rápido faiz o sabão”?, Que “sal” é esse que se forma com a evaporação da dicuada?, Por que a mistura da dicuada com a gordura produz sabão?, O que significa dizer que “a dicuada é que corta a gordura”?. Os alunos tiveram que responder a estas questões/atividades em grupos e entregar suas respostas por escrito à professora.
A hipermídia sobre o sabão de cinzas foi elaborada no contexto de uma pesquisa de doutorado, mas envolveu dados obtidos anteriormente em trabalhos de campo que envolveram interações ao longo do tempo com oito indivíduos de três regiões distintas de Minas Gerais (PINHEIRO; GIORDAN, 2010).
Os alunos interagiram com a hipermídia organizados em grupos e os dados das ações de dois grupos de cinco alunos foram registrados por vídeo com captação de áudio utilizando microfones sem fios que foram colocados nos alunos. Uma mesa de som reuniu os diferentes sinais de áudio para uma filmadora. Nesta etapa das atividades, a interação dos alunos com o CD-ROM foi autônoma, ou seja, não houve intervenções da professora nos trabalhos dos grupos. Ela desenvolveu suas aulas após os alunos concluírem a exploração da hipermídia e entregarem suas respostas às questões/atividades.
Os resultados mostraram duas tendências principais de respostas dos grupos: 1ª) a apropriação do conhecimento químico explicativo ou 2ª) a não apropriação deste conhecimento (ou a sua recusa). Em se tratando da realização das experiências em aulas de química, a professora tinha a expectativa de que os alunos construíssem suas explicações baseando-se principalmente nos saberes da química escolar, mas a maior parte da turma não seguiu esta direção.
Procurando entender as orientações dos alunos na construção de suas respostas
Para compreender a natureza das respostas dos alunos, utilizei uma técnica de entrevista semiestruturada cujo objetivo é mapear qualitativamente conceituações sobre a Natureza e verificar o lugar ocupado pela ciência nas mesmas (COBERN, 2000).
Em sua adaptação, a entrevista foi organizada em três fases: 1ª) projeção de um evento focalizador inicial, 2ª) atividade de organização de palavras e 3ª) atividade de organização de frases. Nas segunda e terceira fases, as palavras e frases foram determinadas previamente pelo autor através de entrevistas exploratórias feitas com estudantes e outros pesquisadores. Funcionam como guias de explicação multidirecionais (Ibid., p. 20) e são mostradas na Figura 1 e nos Quadros 1 e 2. A partir delas, os entrevistados são encorajados a falar em profundidade sobre a Natureza, a “pensar alto” sobre a mesma.
Em nenhum momento se introduz a palavra ciência (ou qualquer outro domínio de conhecimento) na conversa. É deixado aos entrevistados trazer a ciência ou qualquer outro tópico espontaneamente para a discussão mediante a manipulação de cartões contendo os guias multidirecionais. As palavras e frases foram traduzidas do Inglês para o Português com ligeiras adaptações à realidade cultural brasileira.
Figura 1 – Cartões com os guias multidirecionais da entrevista (Material e fotografia de Kenia Dorothéa Salles da Costa).
Conforme mencionado, a entrevista original desenvolvida pelo autor começa com um evento focalizador: um conjunto de seis imagens de paisagens (incluindo uma imagem do espaço sideral), que permitem observar tanto o aspecto benevolente como perigoso da Natureza. As pessoas e as construções humanas são mostradas em uma fotografia, na qual é também mostrada a força e o perigo da natureza. O número de fotografias pode variar, mas devem ser escolhidas cuidadosamente de modo a não focar demasiadamente uma única perspectiva.
O próximo passo consistiu em perguntar aos alunos como definem a Natureza e então iniciar o trabalho de organização das palavras. Nesta fase, as 33 palavras do Quadro 1 foram organizadas pelos entrevistados de modo a associá-las às seguintes sentenças: “A Natureza é _______” e “A Natureza não é __________”. Os alunos tiveram que colocar as palavras abaixo das sentenças e se tivessem dúvidas ou incertezas poderiam criar uma terceira coluna para acomodar palavras indecisas ou que não se encaixavam bem em nenhuma das duas sentenças.
No início da tarefa foi explicado que não há uma organização “correta” das palavras, mas que cada um poderia realizar a sua própria organização. Enquanto os entrevistados desenvolveram esta tarefa, foi avisado que seriam chamados posteriormente para fazer comentários sobre cada uma das palavras e explicar porque as associaram a uma ou outra sentença; nesse sentido, as palavras poderiam ser organizadas segundo grupos semelhantes, mas não necessariamente, ficando a critério do entrevistado.
Após organizar as 33 palavras de acordo com as sentenças “A Natureza é _______” e “A Natureza não é __________”, uma primeira palavra ou conjunto de palavras foi escolhido para começar a falar a respeito. A partir daí foram colocadas perguntas de acordo com os comentários e a organização das palavras, tais como: qual é a relação dessa palavra com a Natureza? Por que você formou esse grupo de palavras? Pode me dar um exemplo? Como assim? Como pode a Natureza ser ao mesmo tempo ser “Bonita” e “Perigosa” (conflito entre palavras)? Há alguma relação entre esse e aquele grupo de palavras? Quais as diferenças?
Dois aspectos mencionados por Cobern (2000) foram particularmente obedecidos na execução das entrevistas: ficar alerta para as contradições e ambiguidades na organização das palavras pelos entrevistados e apresentar as seguintes perguntas quando surgisse uma oportunidade:
- Pode alguém saber coisas sobre a Natureza?
- Que tipo de coisas alguém pode saber sobre a Natureza e como essas coisas podem ser conhecidas?
- Quem descobre essas coisas sobre a natureza?
- Por que essas pessoas procuram saber coisas sobre a Natureza?
Essas perguntas são particularmente importantes para captar as ideias dos alunos sobre a ciência e os cientistas, sem perguntar diretamente sobre isso. Esta fase se encerrou com a formulação da seguinte pergunta: Como você define a Natureza? (Esta pergunta também foi formulada no início das entrevistas).
A fase seguinte envolveu a organização das 18 frases do Quadro 2, de modo semelhante às palavras da segunda fase, mas associando-as, desta vez, às sentenças: “Concordo” e “Não Concordo”. De acordo com Cobern (2000, p. 31), essas sentenças dão a oportunidade de focalizar assuntos relacionados à epistemologia, à ontologia, às emoções em relação à Natureza e às percepções do status da mesma, possibilitando um desenvolvimento de ideias mediante a sustentação dos tópicos.
Segundo ele, alguns conceitos não podem ser representados adequadamente por palavras simples, como na fase 2. Palavras como “divino”, “sagrado” e “espiritual” podem remeter a significados de natureza religiosa, mas nem todos os informantes utilizam essas palavras desse modo. Nesse sentido, um informante que rejeita as palavras de conotação religiosa na fase 2 pode selecionar a frase “Eu vejo o trabalho de Deus na Natureza” como uma ideia importante.
Ainda na fase 2, os entrevistados realizaram a organização das frases dentro dos grupos “Concordo” e “Não Concordo” de acordo com uma escala decrescente de importância. A sequência final foi anotada por escrito e as entrevistas terminaram com a pergunta final: Diga algo sobre a Natureza que é bastante importante?
O procedimento de análise estruturado por Cobern (2000) envolve a transcrição das entrevistas, a codificação de palavras e a construção de mapas conceituais e narrativas concernentes às falas dos/as informantes. A construção de um mapa conceitual propicia uma visão geral organizada, embora interpretada, do que foi dito pelo/a informante durante a entrevista, possibilitando identificar as ideias mais importantes e como estão relacionadas umas às outras.
Após a construção dos mapas conceituais e das narrativas, o autor sugere uma análise comparativa de consistência dentro de cada grupo de informantes ou através das diferenças entre esses grupos. No estudo aqui realizado, a intenção foi identificar e caracterizar as visões de mundo dos alunos que permitisse compreender as suas diferentes respostas para as questões e atividades propostas na hipermídia sobre o sabão de cinzas.
Tal meta foi estabelecida na direção de buscar explicações para as suas diferentes orientações interpretativas. Nesse sentido, não foram elaborados os mapas conceituais das principais ideias dos alunos. No texto 4, apresentarei trechos das entrevistas realizadas com três dos doze alunos entrevistados.
Quadro 1 – Conjunto de palavras referentes à fase 1 da entrevista (COBERN, 2000)
Descrição epistemológica
(Referente a saber sobre a Natureza) |
Confusa Inexplicável Compreensível
Misteriosa Imprevisível Previsível Possível de conhecer |
Descrição Ontológica
(Referente a como a Natureza é) |
Material Perigosa Inalterável
Matéria Caótica Divina Vida Diversa Sagrada Complexa Poderosa Espiritual Ordenada Alterável Pura Bonita |
Descrição emocional
(Referente aos sentimentos sobre a Natureza) |
Paz Assustadora “Tudo de bom”
Excitante |
Descrição de status
(Referente ao que a Natureza é atualmente) |
Rica Explorada Condenada
Ameaçada Poluída Recuperável |
Quadro 2 – Conjunto de frases utilizadas nas fases 2 e 3 da entrevista (COBERN, 2000)
Descrição epistemológica
(Referente a saber sobre a Natureza) |
(a) Possível de conhecer:
1. A natureza precisa ser estudada para sabermos mais. 2. É importante saber como as coisas funcionam na Natureza. (b) Impossível conhecer a Natureza: 3. A Natureza é difícil de ser compreendida. 4. Para mim a Natureza é misteriosa. |
Descrição Ontológica
(Referente a como a Natureza é)
|
(a) Super naturalística:
5. Eu vejo o trabalho de Deus na Natureza. 6. Eu vejo um lado espiritual na Natureza. 7. As coisas acontecem na Natureza porque são determinadas e a Natureza decorre dessa determinação. (b) Naturalística: 8. Eu vejo a Natureza como algo sólido, substancial e em que posso me apoiar. 9. A Natureza é o mundo material e concreto ao nosso redor. 10. O mundo natural é tudo que existe, tudo que sempre existiu e tudo que sempre existirá. 11. O mundo material da Natureza é o único mundo real que existe. |
Descrição emocional
(Referente aos sentimentos sobre a Natureza) |
(a) Positiva:
12. Eu vejo beleza na Natureza. 13. Eu tenho uma reação emocional e prazerosa em relação à Natureza. (b) Neutra: 14. A Natureza é parte da vida cotidiana e eu normalmente não penso a respeito. |
Descrição de status
(Referente ao que a Natureza é atualmente)
|
(a) Orientação como recurso:
15. A Natureza nos dá recursos muito importantes, tais como a água, a energia, os alimentos e os materiais para fazer as coisas. 16. Sem as coisas que tiramos da Natureza não poderíamos ter o estilo de vida que temos hoje. (b) Orientação no sentido de conservação: 17. Eu creio que a Natureza precisa ser preservada. 18. Eu me preocupo com a poluição e os danos causados à Natureza. |
PROSSIGA PARA: Texto 4 – As visões de mundo dos estudantes Messias, Rosemeire e Wesley
Referências
COBERN, W. W. World View Theory and Science Education Research (Monograph 3) Manhattan, KS: National Association for Research in Science Teaching, 1991.
_______ . Everyday Thoughts about Nature: a worldview investigation of important concepts students use to make sense of Nature with specific attention to science. Kalamazoo: Western Michigan University, 2000a (Livro em formato eletrônico fornecido pelo autor).
PINHEIRO, P. C. A interação de uma sala de aula de química de nível médio com o hipermídia etnográfico sobre o sabão de cinzas vista através de uma abordagem sócio(trans)cultural de pesquisa. 2007. 449 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
PINHEIRO, P. C.; GIORDAN, M. O preparo do sabão de cinzas em Minas Gerais, Brasil: do status de etnociência à sua mediação para a sala de aula utilizando um sistema hipermídia etnográfico. Investigações em Ensino de Ciências, v. 15, n.2, p. 355-383, 2010.