Dona Maria da Conceição Sousa de Castro e seu esposo Sr. José Resende de Castro preparam o vinho de laranja há mais de trinta anos. Ambos nasceram e residem na cidade de São Tiago, no estado de Minas Gerais, Brasil, onde são conhecidos por “Dona Ná” e “Seu Zé”. Ela nasceu em 12 de outubro de 1948 e ele em 21 de maio de 1938. Ambos estudaram até o “terceiro e o quarto ano primário”, respectivamente.
Dona Ná aprendeu a fazer o vinho com Seu Zé, que conhece o processo desde criança, pois seus pais produziam a bebida. Ele nos contou que foi uma senhora chamada Maria Silva, mais conhecida como Dona Inacita, nascida em 27 de junho de 1923 e falecida em 16 de maio de 1985, que passou a receita do vinho de laranja para Dona Mindica, mãe de Seu Zé.
O casal segue a receita de Dona Inacita à risca e o resultado é um delicioso vinho feito com laranjas. A bebida produzida por eles destina-se ao consumo próprio, mas também a usam para presentear parentes e amigos. Vez ou outra vendem o vinho sob encomenda. Mas, a palavra “vinho” não se refere exclusivamente a uma bebida alcoólica feita a partir da uva?
O vinho é uma bebida alcoólica fermentada por difusão e é obtido genericamente pela fermentação alcoólica de um suco de fruta natural madura, principalmente a uva (Vitis vinífera). Admite-se, tradicionalmente, que o nome vinho seja reservado só para a bebida proveniente da uva. Para bebidas produzidas por fermentação alcoólica que não seja da uva, deve-se indicar o nome da fruta, como no caso atual, o vinho de laranja. É possível produzir vinho com qualquer fruta que contenha níveis razoáveis de açúcar mantendo os sabores característicos da fruta utilizada (CORAZZA et al., 2000, p.449).
A produção de vinhos de frutas é antiga e acompanha a história da civilização. Acredita-se que eram fabricados no Cáucaso e na Mesopotâmia há 8 mil anos e há cerca de 4 mil anos na Grécia. Os monges foram aqueles que melhoraram a arte de prepará-los na Idade Média (PANEK, 2003). Curiosamente, vários artigos foram publicados em jornais e periódicos do século XIX nos Estados Unidos sobre a produção de vinhos de laranja:
– Na edição de 1º de dezembro de 1878 do New York Times citam o desenvolvimento de experimentos com suco de laranja como opção para substituir o vinho de uvas devido à devastação das videiras europeias pelo inseto Phyllocera vastatrix, que gerou uma crise no mercado internacional de vinhos na época; quatro tipos de vinho provenientes de diferentes laranjas são mencionados com as seguintes características: “cor agradável aos olhos”, “perfeitamente translúcido”, “tem um sabor harmônico com ligeiro tom ácido e riqueza alcoólica de cerca de 15%”;
– No Chicago Daily Tribune do dia 28 de maio de 1879, uma pequena nota informa “Vinho de laranja é a última novidade”, “contém 15 por cento de álcool e é agradável ao paladar”, relacionando-se a um vinho produzido na Espanha como alternativa ao problema do Phylloxera;
– Um vinho produzido com laranjas doces e maduras no estado da Flórida/EUA é mencionado em um artigo publicado no Los Angeles Times em 1885 – um “vinho nativo perfeitamente puro”, “esplêndido” “insuperável em pureza em relação a qualquer dos vinhos europeus”, de “sabor agradável”, “maravilhosamente palatável”, “o vinho mais claro do mercado”, “não demorará muito a superar os vinhos importados”, com “8,64 por cento de álcool absoluto e um pouco acima de 5 por cento de açúcar”, mas “o fornecimento não é de modo algum igual à demanda”;
– No Chicago Daily Tribune do dia 2 de fevereiro de 1888 há menção ao estabelecimento de uma indústria de produção de vinho de laranja na Flórida;
– No periódico Southern Cultivator de junho de 1892, em artigo intitulado Manufacture of Orange Wine (Fabrico do Vinho de Laranja), é citada uma carta do Professor Serge Malyvan, que descreve a produção de 1.500 galões (5678,1 litros) no Condado de Bradford, considerado de excelente qualidade por um especialista de Nova York, o qual salientou a necessidade de haver um aumento da produção para o consumo. Na mesma carta há um detalhe sobre o tempo de produção do vinho e outros aspectos:
“A fermentação do vinho de laranjas leva cerca de seis meses, a clarificação cerca de três meses, não é um vinho fraco, ele é forte, muito saudável, dezoito por cento em álcool, como o xerez de rica degustação, endossado pelos médicos como tônico de primeira classe. O único problema para comercializá-lo é que ele não é fabricado em grandes quantidades e não é divulgado satisfatoriamente”.
– Novamente no New York Times, em 1904, um artigo mencionou que o Sr. Pairault, um farmacêutico francês, realizou um estudo da fermentação do vinho de laranja feito na ilha Martinique, uma colônia Francesa.
“Nas Antilhas, o vinho de laranja vem sendo feito há algum tempo do seguinte modo: as laranjas são descascadas e prensadas com as mãos. Adicionam açúcar ao suco obtido e o colocam imediatamente em um recipiente feito de vidro ou de barro para a fermentação espontânea, que ocorre facilmente, de modo geral, porque o fermento que a determina é com frequência encontrado nas próprias laranjas”.
Junto à descrição acima segue a versão do Sr. Pairault sobre a “preparação racional do vinho de laranja”:
“Após o vinho de laranja ter sido esterilizado suficientemente, para cada quarto do líquido deve ser adicionado de 12,25 a 14 onças avoir-dupois (350 a 400 gramas) de açúcar, 0,175 onças avoir-dupois (5 c.c.) de fermento de cerveja e 2 onças de uma mistura com as seguintes proporções: fosfato de amônio, 30 : fosfato de cálcio, 40 : bitartarato de potássio, 40 : sulfato de magnésio, 3. Quando a mistura for resfriada a fermentação prosseguirá e em poucos dias resultará em excelente produto. Um vinho mais doce ou seco pode ser preparado aumentando ou diminuindo a quantidade de açúcar adicionado”.
As notícias na mídia mostram a produção do vinho de laranja em pelo menos três locais distintos no século XIX: na Espanha, nos EUA e em Martinique. A descrição do modo como o vinho era preparado na colônia Francesa, apesar de sucinta, assemelha-se ao modo como observamos no Brasil. Entretanto, o vinho de laranja nem substituiu o vinho de uva nem ocupou espaço no mercado atual de vinhos. Por que isso não ocorreu? Por que o vinho de laranja não é conhecido nos dias atuais? Por que a sua indústria não se desenvolveu considerando as aclamadas qualidades veiculadas pela mídia americana do século XIX e início do século XX? Por que não encontramos este vinho atualmente nas prateleiras dos supermercados? Nos dias atuais, a expressão “wine of orange” é usada distintamente para se referir a um tipo de vinho de uvas que vem ocupando espaço no mercado internacional, com coloração variando do dourado brilhante ao amarelo-acastanhado, cujo sabor situa-se entre os tradicionais vinhos tinto e branco.
O vinho feito a partir de laranjas não é uma bebida industrializada e comercializada no Brasil. Temos conhecimento daquele produzido por Dona Ná e Seu Zé e um outro elaborado em caráter experimental (CORAZZA et al., 2001), mas sabemos também que há outras pessoas que produzem este vinho na região. Em relação ao vinho produzido por Dona Ná e Seu Zé, será que a receita herdada de Dona Inacita tem a mesma origem daquela desenvolvida no passado nos países nórdicos ou é independente? Nas páginas seguintes veremos como o vinho de laranja é preparado pelo casal a partir de dois ingredientes básicos: a calda de açúcar e o suco da laranja.
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Referências
CORAZZA, M.L.; RODRIGUES, D.G.; NOZAKI, J. Preparação e caracterização do vinho de laranja. Química Nova, v. 24, n.4, p. 449-452, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/qn/v24n4/a04v24n4.pdf>. Último acesso: Jan, 27, 2015.
PANEK, A. D. Pão e Vinho: a arte e a ciência da fermentação. Ciência Hoje, 33 (195), p. 62-65, 2003.
ProQuest Historical Newspapers: The New York Times (1851-2010) with index (1851-1993), Dez., 1, p. 9, 1878.
ProQuest Historical Newspapers: Chicago Tribune (1849-1990), Mai., 28, p. 13, 1879.
ProQuest Historical Newspapers: Los Angeles Times (1881-1990), Set., 5, p. 8, 1885.
ProQuest Historical Newspapers: Chicago Tribune (1849-1990), Fev., 20, p. 2, 1888.
Manufacture of Orange Wine. Southern Cultivator, 50 (6), Jun., p. 279, 1892.
ProQuest Historical Newspapers: The New York Times (1851-2010), Out., 17, p. 7, 1904.